Inquérito Poesia e Resistência (Portugal)

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo.

LyraCompoetics

A. M. Pires Cabral (Chacim – Macedo de Cavaleiros, Portugal, 1941)
A poesia, graças a Deus, pode ser tudo. Por isso também pode ser uma forma de resistência. Pode ser, na afortunada formulação de Manuel Alegre, ‘poemarma’.
Mas não sempre, nem por definição. Pedindo emprestado um chavão muito caro aos homens do futebol, ‘tem dias’. Às vezes resiste, outras vezes desiste, outras vezes ainda consiste apenas.
A menos que se entenda resistência como simples afirmação, isto é, modo de enfrentar os nossos medos e fantasmas, venham eles de fora ou de dentro de nós. Nesse sentido, mesmo uma poesia de conformidade e celebração como a de Mayakovsky pode ser uma poesia de resistência.
Mas eu prefiro pensar a poesia como um utensílio que também pode ser um acto de resistência, quando resistir é preciso. Resistir, denunciar, amotinar.
Adília Lopes (Lisboa, Portugal, 1960)
A poesia é sempre uma forma de resistência. A poesia é o não-aceitar fundamental – escreveu Sophia. Todos os contextos sociais, políticos, culturais foram repressivos, variando de grau de repressão. A poesia resiste à negação da vida, à injustiça.
Os poemas foram inventados para ajudar as pessoas a sobreviver. Os bebés, as crianças e os animais (isso acontece com os gatos) gostam muito de rimas. O prazer das rimas ajuda a lidar com o stress. Os adultos, não todos, também gostam de rimas.
A poesia é uma questão de casamentos de palavras e estes casamentos dão alegria, ânimo. Ao poeta e aos leitores. O prazer do texto ajuda a sobreviver.
Falo de rimas no sentido comum e num sentido amplo: atracção entre sons e entre imagens.
Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937)
Quê?
um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.
vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?
Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.
E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.
E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.
Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.
Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.

Armando Silva Carvalho (Olho Marinho – Óbidos, Portugal, 1938)
A RESISTÊNCIA COM BERNARDO SOARES

Com a idade que tenho, se me fosse perguntado: a poesia é uma forma de sobre-vivência, eu teria a resposta pronta e na ponta dos dedos. Assim, tal como está posta a questão, sou eu que me transformo em resistência.
E até me dava jeito afirmar, de forma possidónia e pessoana, que a minha pátria é a poesia portuguesa. Estava o assunto arrumado, não saía da língua, e com aquela sinceridade também muito pessoana que se pode ter neste género de inquéritos, empurrava para longe uma data de fantasmas, mais vivos que os vivos ao meu redor, e punha-me a dissertar patrioticamente sobre a sobrevivência poética.
Assim, e flutuando no nebuloso indeciso de Bernardo Soares, o tal que dizia que na vida não se deve tocar nem com a ponta dos dedos, a palavra resistência soa-me ao ouvido como um toque de clarim de parada, um dever de perfil, um sagrado apelo vindo do antigamente, uma espécie de catequese, quase um mandamento.
Porque eu tenho alguns anos em cima, já passei as passinhas, já servi as causas, já se me deve pelo menos a idade da reforma poética. Já posso falar em nome próprio.
Portanto, seria até compreensível uma capitulação de idoso à refinada expressão da poesia pura, ao primado da estética das formas, ao secundarismo dos conteúdos na arquitectura do poema. Ou seja: uma entrega final à perturbante aventura das essências, no encalço dos deuses e dos anjos que se revelam no texto; à busca do âmago na realidade sempre incerta e indefinida pela linguagem; ao derrame bolsado por conta da paixão pela eternidade ou por um deus maior.
A vossa pergunta optou por relativizar a resistência: ela será mais uma atitude a concorrer no trabalho poético. Ou seja, os contextos e a sua diversidade podem levar o autor ( por razões de ética, civismo, ou simplesmente cultura) a subordinar-se a um valor suposta e temporariamente mais alto: a resistência.
E no entanto, o menos que me posso pedir enquanto faço versos, me atolo no magma verbal ou nos dias que escorrem por mim e à minha frente, é que não me faltem aquelas das palavras que sempre me acompanharam na expressão desassossegada da escrita e provocada pela experiência do ser e do existir, pela a visão absurda do meu mundo, dos outros, de todos; pela partilha do mal pela ausência do bem, do justo pelo injusto (sem nunca chegar a saber, no fundo, dos dois, afinal o quem é quem no texto), pela impotência frente ao terror, à carnificina, à estupidez imposta a nível mundial e tantos outros lugares cativos e sabidos neste palco global, nesta corrida cada vez mais acelerada a caminho da catástrofe.
E tudo, enquanto vou ficando cada vez mais a sós comigo, guiado pela intuição, essabússola nos descampados da alma, no dizer de Bernardo Soares, um dos auto-demitidos da vida e que cultivava o ódio à acção como uma flor de estufa.
E é disto, da consciência disto, que surge a resistência, que não tem tempos mortos, nem ocasiões propícias. E talvez com ela surja, como hipótese, a sempre desejada beleza do texto, no seu suposto, frágil, absoluto.
Mas como pode resistir o pobre do poema?
Pela simples razão da sua existência. Não tem outros alicerces. Existência igual a resistência. Se isso, além de se traduzir numa convulsão, inovação, seja o que for, em termos textuais, ganhar também peso na balança da realidade social, da política, do mundo, será já outra história acumulada. Um conjunto de palavras não é nenhuma bomba, o mais que pode ser é um panfleto, um manifesto, uma denúncia, e isto em casos extremos de inflamação contestatária. O pobre do poema, o meu, sempre desconfiou dos travestimentos da fuga em direcção ao nada. Se acaso o deixarem ainda circular, e mais dia menos dia possivelmente não deixam, ele na sua mesquinha, ridícula expressão de singularidade ameaçada, afirmará que resiste contra a sua própria negação. Que no fundo não é mais que a negação da liberdade e da vida.
Porque a história da poesia foi sempre o resistir. Em primeiro lugar, ao próprio acto conformado de resistir textualmente. Depois, ao de resistir ao pai, â mãe, à pátria, ao ferro de engomar padronizado das formas, conteúdos e teorias. O de resistir ao poder da palavra que rebaixa e aprisiona. O de resistir ao definitivo reino do consumismo global, não já ao das coisas, mas também o das almas, do espírito, da singularidade do ser. O de resistir às mais sofisticadas redes de repescar o que vai da mente até aos corpos: o tutano dessa viva e desalterada criatura que é o homem, em processo inexorável de desnaturação.
E para terminar, peço aos jovens, que passais os dias de hoje a poetar, que olheis essa aventura ou gesta do grande capital contemporâneo. Nunca o sinistro económico se alçou tão despudoramente soberano sobre as nossas cabeças: novas, velhas, pobres, remediadas, mais ou menos inocentes. Aí, nessa aventura, por certo original na forma de destruir economias, países e pessoas, podeis descobrir a epopeia que falta aos tempos do presente mundial. De que estais (estamos) à espera?

Daniel Jonas (Porto, Portugal, 1973)
Não forma de resistência no sentido ideológico — pelo menos não sempre — mas certamente uma resistência da forma, numa altura em que os próprios materiais do seu endosso estão a ser reavaliados pelo contexto cibernético actual (a casa desta resposta é, aliás, sintoma disso mesmo). Em todo o caso estamos perante um momento evolutivo significativo para o medium, até porque me parece que nos casos em que um livro de poemas não é apenas um fólio com poemas avulsos, a ideia de estrutura e conceito fica abalada pela fragmentação espacial do todo. Diria que a explosão viral nos condena a fazermos arqueologia, recolhendo cacos de vasos e ânforas que são os poemas perdidos desta nossa mega Pompeia (em todo o caso a indústria musical queixa-se do mesmo, ao que parece). Quero com isto dizer que eu próprio ando a equacionar este ofício, perguntando-me se será atilado continuar a fazer coisas como livros, no seu sentido autoral, numa idade em que pouca gente os consome e os consome, diria, holisticamente. Em tempos não distantes um livro com poemas era certamente um enunciado, uma afirmação; hoje não passa de um monte de problemas para toda a gente. Ainda, pois, que um poema seja uma forma de resistência da forma, ela está caduca em relação a uma forma maior, fruto de um outono muito pouco poético.
Diogo Vaz Pinto (Lisboa, Portugal, 1985)
A poesia é o discurso que destrói a convicção de uma ordem social, política e cultural que nos disciplina ao ponto da quase perda da identidade. Submetidos a um regime de conformação que nos obriga a partilhar uma expressão grotesca, a participar da História de um animal que evolui no sentido do horror e já merece há muito o fim dos dias, a resistência, sendo fútil, não deixa de ser a única atitude possível.
Acredito na poesia como formação dessa atitude. Isto implica necessariamente um trabalho de consciência e sensibilidade. A linguagem, nos seus vários modos, contém-nos. Se até certo ponto serve para que nos entendamos, depois já nos limita, constrange-nos. Não basta que sintamos as coisas, temos uma necessidade brutal de exteriorizar sensações, revelá-las, estabelecer cadeias de raciocínio e produzir ecos.
As ideias, para se tornarem claras, exigem que nos apropriemos devidamente das noções e referências que nos importam. Esforçar a linguagem, criar uma relação pessoal com a língua para atingir e representar uma visão única do mundo, é o que nos liberta. Mais aptos para nos recriarmos, para fugirmos às tendências, escapar aos mecanismos de participação simples, quando não involuntária, de conivência e conveniência, o civismo mais básico e cretino.
Pensar não basta, existir simplesmente não interessa. Só ganhamos identidade quando o pensamento se torna perigoso, quando nos torna capazes de envergonhar o bom senso mais genérico, quando somos contra ou verdadeiramente a favor de uma escolha, de algo. Mais do que questionar é preciso arrasar o ânimo das multidões. Obrigar quem participa a justificar-se a si e ao massacrante ritmo que impõe o movimento que diariamente reproduzem.
Fernando Guimarães (Porto, Portugal, 1928)
A poesia é, em primeiro lugar, uma forma de existência e não de resistência. A poesia é. Dizer que ela resiste equivale a admitir um maior ou menor voluntarismo. Ora, se a poesia é, é porque não é deve-ser. A má-vontade ou boa-vontade (por outras palavras, os valores) pertencem ou referem-se apenas ao poeta naquela ocasião em que se diz interveniente como poderia dizer que estava inspirado. Ora a poesia não se faz de ocasiões. Tudo isto parece resultar de um equívoco que é precisamente o que decorre de se falar tanto em moralismo como em amoralismo em relação à arte.
Assim, ao considerar-se o desenvolvimento do pensamento estético em Portugal grosso modo até ao Modernismo verifica-se que subordinação da arte à moral se torna recorrente. Se quiséssemos apontar um dos momentos altos, mas também piores, dessa subordinação poderíamos escolher os tempos da Contra-Reforma. Aí está um contexto social, político e cultural que permite considerar a arte em função dos valores ideológicos e à sua luz, ou então à sua sombra, condená-la ou exaltá-la.
É óbvio que se pode dizer que o que é resiste e, depois, acrescentar que o que foi condenado ou louvado é a melhor imagem dessa resistência. Mas um mau poema escrito com boa-vontade ou má-vontade em consonância com valores aferidos apenas ética ou ideologicamente nem sequer é um poema. O que fica, em tal caso, é o que não existe. E o que não existe está condenado a não resistir. Só nesse sentido é que podemos afirmar que a poesia é uma forma de resistência.
Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, Portugal, 2012)
Creio que a poesia, em sentido lato, corresponde sempre a uma forma de resistência, embora tal resistência se torne obviamente mais notória em alguns contextos sociais ou políticos. É claro que, se vivermos em ambientes de opressão ou de falta de liberdade, a poesia – tal como toda a arte, aliás – costuma assumir uma responsabilidade maior, desempenhando mesmo um papel de combate, como por exemplo durante a ocupação da França pelos nazis, em que o poema «Liberté», de Paul Éluard, ganhou uma força muito amplificada e se transformou num símbolo da Resistência (aqui com maiúscula).
No entanto, esses contextos são excepcionais. Nas sociedades em que hoje vivemos – pelo menos no chamado Ocidente – não se trata propriamente de combater uma tirania explícita, mas de resistir de outra maneira. E volto à minha afirmação inicial para repetir que, em sentido lato, a poesia acaba sempre por implicar a resistência a muita coisa, embora, do meu ponto de vista, essa resistência me pareça tanto mais eficaz quanto menos apostada em ser do contra só por um gesto de simples provocação. Para mim, a prática da poesia nunca envolveu o desejo de me afirmar contra quem quer que seja, e desagrada-me que o panorama poético actual possa ser visto como uma renhida luta de galos em que cada um procura pôr-se em bicos de pés, tentando ganhar algum protagonismo pela agressividade ou violência dos seus escritos.
Uma atitude como esta situa-se nos antípodas do que me parece ser a resistência mais profunda da poesia: uma resistência a qualquer ortodoxia cultural que pretenda colocá-la num pedestal ou enquadrá-la num sistema de valores inócuo ou predefinido, segundo certas regras consideradas aceitáveis ou próprias da «boa poesia». Diante disso, é claro que a poesia tem de resistir – e tem resistido, por exemplo, a uma certa ideia de mercado que hoje tende a contaminar, melhor ou pior, toda a cena literária, com o ritual dos lançamentos, das entrevistas, etc. De facto, a poesia pouco se compra e pouco se vende, situando-se, em geral, à margem dos grandes negócios editoriais, o que lhe permite usufruir de uma liberdade cujo reverso da medalha pode ser o de uma menor relevância colectiva. Nesse aspecto, é natural que as principais editoras não a promovam como fazem com outros géneros literários, considerando-a um reduto lateral que lhes pode conceder algum prestígio, mas no qual não vale a pena investir muito.
A solução estaria, então, numa estratégia de promoção agressiva da poesia ou no proselitismo de quem a defendesse ao senti-la ameaçada?… Também não me parece. A poesia, tal como o amor ou o desejo, pode ser paradoxal ou contraditória. Por vezes gosta que lhe resistamos, afastando-se dos que a pretendem defender e aproximando-se, a horas mortas, dos que mais lhe resistem. Isto significa que a poesia tende a resistir a um enquadramento institucional que, procurando promovê-la com as melhores intenções, pode correr o risco de a sufocar. O que quero dizer é que a poesia se justifica a si mesma – obedecendo à necessidade de quem a escreve ou de quem a lê – e que, na sua génese, ela não existe para ser ensinada nas escolas, para ser criticada nos jornais ou para justificar qualquer carreira académica ou institucional. Só poderá entender isto quem alguma vez tiver passado pela experiência literária no sentido mais forte e radical do termo, e não aqueles para quem a poesia se tornou uma obrigação enfadonha ou uma ocupação profissional frequentemente autofágica, asséptica e destituída de qualquer relação com as suas vidas.
Por outras palavras, isto implica, afinal, escrever contra alguma coisa, sim, mas não como mera atitude provocatória. Trata-se de escrever ou de ler sem roteiro nem bússola, resistindo à inércia e percebendo que às vezes o atrito se torna essencial. E resistindo, acima de tudo, a nós próprios, aos nossos pequenos truques ou vícios, para chegar, melhor ou pior, a um lugar desconhecido – o único que vale a pena. Para que isso aconteça é preciso correr riscos, resistir ao mais habitual horizonte de expectativas, sair da «zona de conforto» (como agora se diz), estar no fio da navalha. Ou, tal como algures aconselha Ponge, é preciso que as coisas nos perturbem e que nos façam «sair do ronron».O que é também uma forma de resistência.
Dito isto, será que não existe nenhuma responsabilidade – ou seja, uma forma de resistência ética – na poesia e nos poetas, sobretudo perante uma sociedade cujo único valor parece ser, cada vez mais, o do dinheiro?… Creio que sim, que essa resistência continua a fazer sentido. Ninguém vive numa torre de marfim. Não creio, todavia, que tal resistência deva transformar a poesia numa arma de arremesso ou o poeta no porta-voz de uma bandeira qualquer, como se estivesse investido de uma missão que o tornasse superior aos outros seres humanos – isso parecer-me-ia de uma grande sobranceria… Por isso a maior resistência do poeta não é política ou religiosa ou social – é sobretudo uma resistência para consigo mesmo e para com os que o rodeiam, de modo a ser fiel ao imperativo interior que o leva a escrever aquele texto naquele momento, sem medo de desagradar a ninguém e sem ceder às modas do seu tempo ou aos ditames de uma sociedade que por vezes lhe pede para corresponder a um certo figurino ou estereótipo do «Poeta» com maiúscula (ou também com uma enfática minúscula, conforme as tendências…). Saber resistir a esses estereótipos é, quanto a mim, um dos mais difíceis compromissos éticos de quem escreve – e é essa, afinal, também uma das mais decisivas formas de resistência da poesia.
Gastão Cruz (Faro, Portugal, 1941)
Para quem, como é o meu caso, acompanhou a poesia portuguesa e a sua situação, desde o final dos anos 1950, a palavra “resistência”, associada à poesia, remete imediatamente para um contexto de protesto social e político, que vinha já, pelo menos, desde a década anterior, aquela em se afirmou o neo-realismo, corrente que, no que à poesia se refere, se demarcava, quer da aparecida nas páginas da presença, quer das tendências surgidas dentro ou em torno dos Cadernos de Poesia, de que as preocupações com tal problemática estavam, no essencial, afastadas.
No entanto, como já tenho feito notar, o carácter protestatário – e, menos ainda, panfletário – não foi nunca o traço dominante da poesia neo-realista, o que se torna evidente quando pensamos em poetas como João José Cochofel, Políbio Gomes dos Santos, Manuel da Fonseca, Álvaro Feijó ou Carlos de Oliveira.
A questão fundamental reside, talvez, em determinar se a expressão da resistência à opressão imposta pela ditadura se sobrepõe ou não à valorização da palavra poética, ou seja, se a poesia se transforma numa mera arma verbal, perdendo a sua especificidade artística, ou se o poeta consegue conciliar a necessidade de tematizar o protesto e a revolta com as exigências de uma linguagem que não abdique da sua força inventiva como arte.
Para quem escrevia nesse período, tornava-se, todavia, evidente que o próprio acto de escrever era, em si mesmo, uma forma de resistência, independentemente de existir ou não uma alusão mais ou menos explícita à realidade social dominante.
A poesia seria sempre um “grito claro”, título, em 1958, do primeiro caderno da colecção A Palavra, que era também a primeira recolha de poemas de António Ramos Rosa. E o nome escolhido para essa colecção, editada em Faro, paralelamente à publicação dos Cadernos do Meio-Dia, revelava que o grito de liberdade era constitutivo da própria linguagem poética, ou dela indissociável, isto é, que só uma “poesia, liberdade livre” poderia dignamente veicular o urgente “grito de libertação” do poeta: “não posso adiar para outro século a minha vida / nem o meu amor / nem o meu grito de libertação”.
A poesia de temática social e política, que viria a ser, ao longo da década de 1960, praticada por muitos dos principais poetas em actividade nesse período, de Sophia e O’Neill a Ruy Belo e Fiama, mostra-se consciente de que a atitude de protesto e de denúncia da opressão só se justifica, poeticamente, se mantiver uma aliança consistente com os valores próprios da poesia: densidade verbal, peso da palavra (Carlos de Oliveira: “Rudes e breves as palavras pesam / mais do que as lajes ou a vida”), capacidade de surpreender.
Este entendimento, a meu ver o único legítimo, do que seja a linguagem da poesia, encontra em António Ramos Rosa (Poesia, Liberdade Livre) e em Ruy Belo (Na Senda da Poesia) as mais adequadas teorizações surgidas em Portugal.
Creio que, nos tempos que correm, faz todo o sentido falar da poesia como uma forma de resistência aos demasiado frequentes usos dessorados do discurso, prosaicos no pior sentido, já que também a grande prosa artística deles se afasta. E quando a eles recorreu, nomeadamente na década remota de 1930 (penso, evidentemente, sobretudo em Irene Lisboa), a poesia fê-lo com sofisticado e inovador artifício, claramente inscrito num quadro de aquisições da modernidade, o que não poderá ser nunca o caso de certos prosaísmos actuais.
É nesta linha que, no seu ensaio “Poesia Nova”, recolhido no volume Na Senda da Poesia, Ruy Belo opõe a “palavra poética” à “palavra prática”:

“Como palavra prática, útil, a palavra deixa de ser uma fonte de conhecimento e até se esquece que o foi. Passa a inserir-se no fundo puramente sensível do homem. Torna-se veículo do sentimento bruto, com o qual não há identificação possível, porque é extra-artístico. Deixa de se subordinar à voz, de a servir com uma servidão genuína que não a fizesse deixar de ser ela própria. Passa a ser mediata e não imediata. Já não vale por si. É afectada a um fim.”

A palavra poética resiste sempre, portanto, a esta degradação. De novo, Ruy Belo:

“A condição da palavra não significativa é tão degradante, que ela começa por não poder ser termo de um conceito. Embora a palavra lógica seja uma palavra serva e não livre como a palavra poética, que vimos ser responsável por si própria, sempre é uma palavra humana. A voz não significativa é que o não é.”

Trata-se, pois, de distinguir entre “significação poética” e “significação lógica” ou mesmo “não significação”. Por isso, no ensaio “O poema, sua génese e significação”, António Ramos Rosa se refere, a propósito da poesia de Fernando Pessoa, e particularmente do poema “Depois da feira”, que analisa, à “irredutibilidade da significação poética”.
Mesmo quando não abdica do seu “dever falar” (versão mantida, durante muito tempo, num conhecido poema de Cesariny, e por fim substituída por “querer falar”, que, como afirmação de uma vontade, talvez afinal não altere profundamente o sentido inicial da intenção do autor), o poeta sabe que não pode trair a natureza da sua arte, que é a invenção de uma linguagem, a criação da “poesia nova” de que falou Ruy Belo. E esta consciência conduzi-lo-á sempre à resistência a todas as formas de opressão e de conservadorismo, uma resistência que não pode deixar de ser um sinónimo de liberdade, ou de busca incessante de liberdade, quer na sua relação com o mundo e no seu “diálogo com o universo”, quer, o que é afinal o mesmo, na sua escrita.

Herberto Helder (Funchal, Portugal, 1930-2015)
O poeta sugeriu-nos a reprodução do seguinte fragmento de Photomaton & Vox:
(a poesia é feita contra todos)
É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.
Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. Os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso rosto pode promover o susto dos corações afectos e afeitos à cordialidade.
Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem de ouro implantada nos olhos e nos ouvidos, para descobrir o rosto zoológico que nem uma câmara de filmar tornaria capturável e doméstico. A impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura. Há muita gente para habitar as casas. Mas só gostamos de oficinas explosivas.
Temos tudo o mais contra todos os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia estar por acaso a nossa morada.
Deus tem uma cabeça demasiado pesada, ocupa totalmente o alforje do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro com vista a um momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo, e por isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós menos exactamente a morte das coisas divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma política da ignorância pessoal que nos compelimos assumir até ao fim, para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a saber que nunca estivemos.
A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar.
E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.

(Herberto Helder, Photomaton & Vox, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 152-153)

Inês Lourenço (Porto, Portugal, 1942)
POESIA E RESISTÊNCIA
A associação destes dois vocábulos “poesia e resistência” corresponde, usualmente, numa certa vulgata algo superficial, ao conjunto de poéticas ou aos denominados textos de intervenção, que têm por objectivo a denúncia de um regime político criminoso e repressivo.
Parece, não sei se por definição ou dúvida, que a poesia desde tempos imemoriais foi sempre uma forma de resistência aos discursos dominantes, às tarefas esclavagistas, ao torpor repetitivo das horas, às finitudes de todo o género. Desde as velhas tradições orais, do rimance e da canção de gesta, que graças a oportunas recolhas vêm resistindo até à actualidade, podemos igualmente relembrar as canções de trabalho que ainda hoje perduram na cada vez mais parca ruralidade portuguesa.
A poesia é, decerto, um outro olhar para além do senso comum, e de todos os condicionalismos sociais, morais, estéticos ou outros. Como disse Artur Rimbaud, La liberté libre não pode ser assenhoreada por nenhum mandato. Quando me acerco de um novo poeta quero ser surpreendida, entrar numa mundividência que desconhecia, sair daquele livro de poemas com algo jamais lido. Por isso, o poema será tanto mais surpreendente, quanto mais altere a percepção do leitor. Com isto se preservará a usura do tempo e para além de respeitáveis e necessários comprometimentos circunstanciais a poesia resistirá.

É, no entanto, possível aliar, simbioticamente, várias “resistências” num só texto. Citarei, por exemplo, Paul Celan, no conhecido poema Todesfuge (Fuga da Morte), que conseguiu ser resistente a todos os títulos:

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete

(trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)

Na nossa Literatura, é de sublinhar a lírica da resistência à ditadura desde final da década de trinta até 1974, tendo alguns autores sofrido até penas de prisão (Jaime Cortesão, Miguel Torga, Casais Monteiro, Borges Coelho e Veiga Leitão). Outros incluíram no seu discurso poético a denúncia da iniquidade da repressão, cantando O dia inicial inteiro e limpo da liberdade recuperada (Sophia de Mello Breyner).
Para terminar este breve depoimento, quero deter-me em dois exemplos maiores que não costumam ser conotados com o binómio “poesia e resistência”: um deles será Fernando Pessoa que, com a sua heteronímia conseguiu ultrapassar os condicionalismos de uma voz unívoca, de um só sujeito lírico, construindo um “drama-em-gente”, onde todas as inter-subjectividades são possíveis. O outro exemplo é do século XVI, mas, surpreendentemente, parece aplicável ao Portugal da actualidade:

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

(Os Lusíadas, Canto X, Est. 145)

Mas, como se verifica, já estamos no século XXI e resistimos à austera, apagada e vil tristeza quinhentista, lendo estes geniais decassílabos.

João Luís Barreto Guimarães (Porto, Portugal, 1967)
Não me parece que a poesia seja uma forma de resistência. O verdadeiro lugar da resistência é a vida. A poesia: é somente uma pequena parte da vida, não é a vida inteira.
Dentro da vida é onde verdadeiramente se resiste. Não é nas suas franjas, na marginalidade. Essa é a solução fácil, a solução sem esforço. Resistir é participar, não é, nem nunca foi, desistir.
Não me parece que a palavra seja uma forma de resistência. A verdadeira forma de resistência é o Silêncio. Melhor ainda: o inaudível (silêncio). É sermos esquecidos e não dizermos nada; desconsiderados e nada falarmos; desconvidarem-nos e mudos respondermos.
Insultarem-nos, maldizerem-nos, invejarem-nos, e a tudo respondermos com a indignação do silêncio.
O silêncio é uma arte que se aprende. É uma arte lenta, frágil, paciente, mas a única forma de resposta que verdadeiramente perdura. Só se alcança com a idade, essa capacidade. É por isso que a resistência nos poemas de Herbert, Brodsky ou Milosz, não está tanto no que é dito, na tinta aparente do que é dito, quanto no espaço entre palavras, na forma como os versos calam ao chegar ao fim da linha, nas pausas entre as estrofes. Numa cortina em branco.
É. A verdadeira forma de resistência em poesia não é a palavra mas a página em branco. Não devo portanto prolongar muito mais a minha resposta.
José Emílio-Nelson (Espinho, Portugal, 1948)
A poesia é uma forma de resistência ao embelezamento, à intencionalidade das lições ideológicas e sociais e à tentação da experimentação linguística como condição de originalidade. Mas desregradamente tudo é matéria para a poesia (não se exclui o compromisso com a história, programação de vanguarda, etc.). Noutras palavras, e citando Aristóteles: se acontece ao poeta escrever sobre factos reais, não é menos poeta por isso. 
É óbvio que nenhuma apreciação crítica, juízo estético (que historicamente se sucede em formulações conceptuais diferentes entre si) se impõe como princípio estético dogmático, como chave. Para Susanne K. Langer, por exemplo, a poesia é criação de eventos ilusórios mesmo quando opinião. 
A poesia no seu trabalho de assimilação (da tradição que corrige e redefine), de deslize (não já a definição clássica de opção sobre a linguagem) , busca a voz justa, uma súbita iluminação, discurso de imagens [Mário Luzi], é um profundo testemunho de insatisfação. É êxtase, portentosa imperfeição [Longino]. 
Essa tessitura sobre a linguagem, incerta e inconclusiva, cria acções, não alienação: na sua estranheza se circunscreve ao futuro, avança com distanciamento (ou comprometimento) à vulgata (poética): vulnerável afirmação que não se associa à utilidade, eminente e obscura, placidez ou turbulência sonora, perversão que impele à beatitude, desânimo e alegria. 
A poesia afecta lacerante a mundanização, secreta elabora a intemporalidade. A poesia é uma forma de resistência: a poesia resiste à poesia.
José Miguel Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal, 1969)
Na melhor poesia, como na melhor literatura em geral, existe sempre uma intenção, explícita ou não, de resistência. A quê? À fealdade, à mentira e à estupidificação promovidas pelos oligopólios de comunicação social.
Nesse desiderato, um poeta não pode deixar de declarar guerra a todo o género de clichés: verbais, desde logo, mas também políticos, filosóficos, psicológicos, etc. Mas sem nunca perder de vista que, numa era de comunicação de massas, essa sua guerra é tão desigual, e portanto tão caricata, como a guerra que uma sardinha (zangada) decidisse mover a um petroleiro (de aço).
José Tolentino Mendonça (Machico, Portugal, 1965)
Posso contar uma história que me foi contada pelo poeta Eugénio de Andrade? Numa sessão literária em Espanha, Eugénio foi cumprimentado por um jovem poeta chinês que, com a ajuda de um tradutor, lhe explicou ter lido um poema dele na Praça de Tianamenn. O jovem aproximou-se e beijou-lhe as mãos. O poeta retorquiu, beijando-lhe o rosto. E não disseram mais nada.
Quando a história me foi contada, perguntei a Eugénio de Andrade se sabia qual tinha sido o poema lido. Ele atirou-me um espantado: “Acreditas que eu não sei?”.
A poesia é, sim, uma forma de resistência. Mas ela tem de não saber.
Luís Quintais (Angola, 1968)
Admito que sim. Basta ler Akhmatova, Milosz, Herbert, Mandelstam. Pode-se morrer por ela também. Celan talvez seja um exemplo extremo. Há virtude e ética na poesia. Todos os tempos foram tempos de indigência, mas também de poesia. Resistir ao empobrecimento da linguagem. Resistir ao empobrecimento da experiência num mundo hiper-representado, esgotado, talvez estéril, o nosso. Resistir é uma tarefa inacabada, de todos os tempos. A poesia é a arte da pobreza, da contenção, da probidade, talvez da decência, mesmo que alguns dos nossos melhores poetas tenham sido fascistas. Lembro-me de Pound, claro. Mas Pound é um dos poetas mais actuais que conheço. Alguém que resistiu à usura e que ironicamente acabou fascista ou comprometido, sem regresso, com essa terrível e impiedosa patologia do século XX. A resistência poderá dar lugar à tragédia, e a poesia é a emblematização do trágico, isto é, do humano.
Manuel António Pina (Sabugal – Beira Alta, Portugal, 1943-2012)
Não me parece que a minha poesia – e só dela posso falar – contenha, e muito menos seja, alguma forma de resistência política ou social no sentido estrito em que às vezes se fala de “poesia política” ou de “poesia social”. Num sentido mais vasto e indeterminado, talvez. E talvez, como se diz na questão que é colocada, “por definição”, na medida em que a diferença da linguagem poética e aquilo que nela essencialmente (raio de palavra!) há de interrogação ou problematização da própria língua constitui uma forma de resistência ao mero uso comunicativo desta.
A poesia, pela sua proximidade ao que se poderia chamar de presença real da palavra, tem uma vocação “natural” de resistência à corrupção da língua. Umberto Eco diz algures qualquer coisa do género: “Onde não fala o porteiro, que se cale o poeta”. Isto não quer dizer (espero eu…) que a poesia se deva cingir a uma linguagem de porteiro, mas que a poesia usa (quando usa) a linguagem vulgar sem se esgotar nela, antes se apropriando dela e forçando-a, como nas metáforas que Warren e Wellek classificam de “sumidas”, a confrontar-se com a sua especificidade, quando não a sua originalidade, no interior da língua, corrompendo desse modo “com sangue novo a [sua, da linguagem vulgar] anemia” (João Cabral de Melo Neto).
“Como pode resistir a poesia?”, pergunta-se: dizendo, por exemplo, coisas como “a Terra é azul como uma laranja”, “os pássaros são os primeiros pensamentos da manhã”, “a filha da manhã, Aurora de róseos dedos”, “tapeçaria de homens” (uma batalha), etc.. “E a quê?”: ao jornalismo, à televisão, à publicidade, ao linguajar da prosa de entretenimento e a todos os tipos de linguajares e idiolectos que parasitam e empobrecem a língua: o politiquês, o economês, o eduquês, a língua de pau do Direito e das ciências sociais, a língua de manteiga dos negócios e da diplomacia, concebida para enganar, e por aí adiante.
Assim sucedendo, a poesia já é forma de resistência “política” e “social”.
Manuel de Freitas (Vale de Santarém, Portugal, 1972)
Num mundo como aquele em que vivemos, a poesia é, quase fatalmente, uma forma de resistência. Resistência à hegemonia de outros géneros literários ou (sub)produtos culturais, que a remete para uma quase invisibilidade, mas também resistência à massificação, ao espectáculo pseudo-cultural e à degradação quotidiana do verbo.
A poesia, como toda a arte, é ainda uma forma de resistência à morte, à monotonia, à insipidez dos dias e das palavras. No actual contexto português, a poesia pode (e deve) ser também uma forma de resistência ao infame acordo ortográfico, cuja prática virá trazer à língua as mais indesejáveis e apoéticas ambiguidades, entre outras consequências nefastas e dificilmente justificáveis.
A poesia resiste por ser essa a sua condição, porque toda a grande poesia provém de uma urgência de dizer, mais do que de uma escolha ou de um projecto.
Enquanto género praticado e acompanhado por não mais do que trezentas pessoas (e a isto se poderia chamar «a constante de Rui Pires Cabral»), a poesia, em Portugal, resiste quase heroicamente à crescente indiferença que por ela nutrem editores, suplementos literários e livreiros. A poesia resiste porque, na sua autenticidade e nobreza, não tem como objectivo chegar a milhares de leitores nem constituir, ao contrário das artes plásticas, uma forma de subsistência material.
A poesia resiste porque não pode ser adiada – para outro tempo, lugar ou voz. Nesse exacto sentido, e como já Goethe afirmou, a poesia é circunstancial. E resiste/responde, muitas vezes, a circunstâncias tão exactas quanto reconhecíveis: um luto, um encontro, um concerto de música, uma viagem.
Bem ou mal, o último poema que publiquei foi uma tentativa de resistir à aclamação de puetas (sic) que representam, para mim, tudo aquilo que a poesia não é.

INVENTÁRIO PLEBEU
para o José Miguel Silva
A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.
Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois – e aquém – de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)
Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
e o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.
O sexto – não, não me apetece falar aqui do sexto.
Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).
Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.

(Revista Piolho 006, Setembro de 2010, Porto, Edições Mortas / Black Sun Editores)

Manuel Gusmão (Évora, Portugal, 1945)
§1
Pode sê-lo. Sempre, por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais. Hoje, em algum dos lugares em que a história da modernidade de longa duração continua a vir e a inscrever-se nos tempos, alguma poesia continua a resistir. Ela resiste à quantidade de barbárie que em cada tempo insiste. Ela lê em cada tempo quais as ameaças e, consoante o seu teor, o seu perigo, por um lado e, por outro lado, o seu modo de oposição e o desejo que trabalha a sua poética, ela responderá. Ela preserva, assim, aberto ao humano, o reino da possibilidade e das transformações.
Dizer que a poesia resiste é afirmar que ela é uma específica resistência à sua completa apropriação pela mente ou pelo espírito. É pensar a materialidade do seu fazer (poiesis e poiema), retirando-a do campo de acção de qualquer política do espírito.
§2
Em Platão e Aristóteles, a poética é chamada para pensar a política. Acontece apenas que Platão e Aristóteles estão em campos diversos ou representam partidos diferentes. E há ainda que admitir a invenção da filologia nietzschiana segundo a qual filósofos e poetas antes de Sócrates eram mestres de vida. Ou, digamo-lo de outra maneira – a poesia, era como a filosofia antes de Sócrates, uma forma de vida.
§3
Como forma de vida, a poesia é um fazer e um acontecimento de linguagem que a tem por palco, co-move os sentidos e o corpo & alma dos cidadãos, mobiliza, atravessa e convoca o conhecimento, a ética e a estética. Kant distinguiu essas três esferas da cultura mas não cedeu completamente à tentação de transformar essa distinção numa separação, como aconteceu com muitos dos que vieram depois dele.
§4
No limiar da era capitalista moderna, uma figura colossal, Dante, ao mesmo tempo o último poeta da Idade Média e o primeiro poeta moderno (Engels, 1893, prefácio à edição italiana do Manifesto do Partido Comunista) decide a língua em que vai escrever a Commedia. Nos finais do séc. XIX, Rimbaud procurava ainda uma língua. Trouver une langue – será a infindável tarefa que muitos dos mais fortes se darão ou retomarão de outros e de que apresentarão várias versões. De William Blake a Jean-Arthur Rimbaud, de Hölderlin a Mallarmé, de Rilke a Paul Celan encontramos cartografias ou marcos de resistência que nos permitem mapear a rede das opressões, a fisionomia por onde a barbárie se acende, tentar perceber a diferença dos tempos.

Muito tem aprendido o homem
Desde o romper do dia, desde que somos um diálogo
E sabemos uns dos outros; mas em breve seremos um cântico.
(Hölderlin)

O poeta então é verdadeiramente aquele que rouba o fogo.
Ele é encarregado da humanidade, dos animais mesmo; deverá fazer sentir, apalpar, escutar as suas invenções; se o que ele traz de lá dos fundos tem forma, ele dá forma se é informe dá o informe. Encontrar uma língua.

Quando for quebrada a infinita servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela [ …] (Rimbaud)
Porque não é de sonoridades elementares, pelos metais, as cordas as madeiras, antes inegavelmente da palavra intelectual no seu apogeu, que deve, com plenitude e evidência, resultar, enquanto conjunto das relações existentes entre tudo, a Música.
(Mallarmé)

§5

Narrar, ensinar, mesmo descrever, tudo isso funciona; e embora para partilhar o pensamento humano talvez baste a cada um tirar ou pôr na mão de outrem uma moeda, em silêncio, o uso elementar do discurso serve bem a reportagem universal da qual, excepção feita à literatura, todos os géneros escritos contemporâneos participam.
(Mallarmé)

Eis uma versão (histórica) daquilo a que a poesia resiste ou pode resistir, mesmo se de mais não é capaz: ao império dessa reportagem universal, que já Mallarmé denunciava, eque hoje não só ameaça anexar todos os discursos, todos os géneros de escritos contemporâneos, como começou já a contaminar e a dissolver sectores da literatura e visa expropriar os mais explorados, os humilhados e ofendidos, do próprio direito a enunciarem-se e a mostrarem a míngua, a sua falta. Essa reportagem universal é o discurso global e dominante, produzido pelo poder económico e financeiro e pelos seu agentes na burocracia do aparelho político, e nos seus vários aparelhos comunicacionais. Esse discurso sopra devastadoramente no espaço audiovisual, subordina e condiciona os espaços da escrita e mesmo as formas de divulgação da cultura elitária; veicula um pensamento único e é o vasto simulacro de uma voz sem sujeito, a voz sem sujeito de uma cultura mediática de massa, que esborrata, apaga e evapora o complexo e rude som da fala entre humanos.
A cultura mediática de massa desenvolve-se através da mercadorização dos artefactos culturais; da sua transformação em bens a serem consumidos sob a forma de espectáculo; da criação de um ambiente de trabalho que condiciona pesadamente a invenção e da imposição de um hardware que restringe severamente as opções de software.

Margarida Vale de Gato (Vendas Novas, Portugal, 1973)
DEMOCRÍTICA
Mais tempo, admito, gasto a passar mal
por relativo amor e altivez
do que a fazer política, e prezo
sobre o consenso o rasgo original,
herança doentia do burguês
de génio, que nega ser geral
o raio que trilhou seu ideal,
e deixa que o isente a lucidez
da rota rigorosa da unidade
além da sua esfera. Mais consola
levantar os óculos à verdade,
suspensa ao clamor mudo lá do fim
da literatura, onde não rola nada
excepto, além das massas, o sublime.
Precário verso, se o gesto
o não redime –
paira só na frouxa linha acima
dos meus ombros
onde ruo assolidária e sem assombros.
Agora, se descerem os médios
à rua e os verdadeiros pobres a gente
atenta e recíproca a encher de pulmões ar
canto atrito resistência e translação,
a derrubar ditas classes consumo e capital,
o cómodo sem afecto, a sôfrega avidez pateta,
e o que a todos sobre os ombros nos carrega,
aí então. além de sublime e ser poeta,
talvez mais do que busque eu dê entrega.
Nuno Júdice (Mexilhoeira Grande – Algarve, Portugal, 1949)
A palavra resistência pode criar alguma ambiguidade devido à sua associação a um período específico da história recente da nossa poesia. Trata-se de uma ligação circunstancial, pelo que me afasto dela, pensando em termos mais gerais o conceito de resistência como força que se opõe a outra, no sentido que lhe dá o Aurélio de bolso.
Importa então definir essas duas forças dentro do campo em que se situam, que é o da linguagem. Uma, é a força da inércia, dos hábitos de falar e de escrever, das frases e das ideias feitas; a outra, é a força da palavra poética que vai contrariar esse sistema normal e normativo, construindo uma alternativa de expressão ao que se tornou banal e instrumental no plano comunicativo. A literatura é o veículo por excelência dessa alternativa; e dentro da literatura, ou por vezes ultrapassando-a, é a poesia que prossegue o caminho de uma linguagem que não segue a acção, como dizia Rimbaud, mas vai à sua frente.
Se entendermos isso como resistência, julgo ser nesta acepção da palavra que a devemos entender no campo poético. O próprio acto de escrever um poema é, neste sentido, um gesto que traduz essa oposição ao conforme e ao estabelecido. Estamos aqui já no plano de uma arte poética; e tem de se partir deste conceito de uma visão daquilo que se entende por escrita para poder prosseguir com insistência e com eficácia a rejeição do lugar comum. Trata-se de uma atitude subversiva, transgressiva, como é evidente; mas é aqui que a porca torce o rabo, como diz o povo. De facto, confunde-se, mais uma vez a partir dos ideias vanguardistas do século XX, por um lado, e da literatura engajada, por outro lado, essa subversão com um uso programático e ideológico do poema que não passaria de uma «ilustração» de manifestos ou de projectos estéticos ou políticos. Pelo contrário, qualquer poema (desde que o seja, como é óbvio) constitui um acto transgressivo do dizer normativo; e mesmo em casos em que, aparentemente, esse dizer não transmite uma impressão de ruptura (penso em poemas de um Pascoaes, de Florbela Espanca, de um José Régio, de um David Mourão-Ferreira, entre muitos outros que se situam numa área estética que retoma formas tradicionais) , o que sucede é que algo acontece que faz parte dessa «vibração» de que Mallarmé falava, embora aplicando-a a outros aspectos do efeito causado pelo poema no leitor.
Tem aqui origem também o equívoco que a palavra resistência pode suscitar. Já afastei o aspecto político; mas há uma perversão dessa conotação ideológica à própria estética por parte de quem considere que a literatura deve ser uma busca permanente da originalidade e da diferença. Houve momentos em que essa busca fez sentido porque fazia parte do que, na época, representava uma alteração da linguagem dominante. Do futurismo ao surrealismo, foi esse o projecto revolucionário dos adeptos desses modelos literários; mas não se deve confundir revolução e resistência. De Marinetti a Breton, temos afirmações de força que, embora combatendo movimentos literários reconhecidos na época, não seriam propriamente actos de resistência dado que nas batalhas que travavam surgiam já como vencedores, apesar de ataques e rejeições de que eram alvo por parte de académicos e tradicionalistas. Em certa medida, um Rilke ou um Stefan George, um Saint-John Perse ou um Lorca, para não falar de um Claudel, representavam melhor a resistência ao que era o ímpeto destruidor e uniformizador da expressão poética do que um Marinetti ou mesmo alguns surrealistas que não passavam de máquinas de repetir receitas programáticas.
Associo então a resistência em poesia à presença do sujeito na escrita, e à afirmação desse sujeito – que eventualmente se associará a um Eu, ou aos múltiplos eus que a heteronímia pessoana vai propor como sua figuração literária – no poema que projecta o indivíduo, enquanto Ser, num objecto verbal que sem essa dimensão essencial nada representará, para além de um mero artefacto lúdico. Escrever um poema é, portanto, uma continuidade dessa relação primordial entre a palavra e o sujeito que constitui a sua razão mais profunda, resistindo aos apelos da repetição, do programático, das escolas criativas de onde podem surgir produtos em série de uma «lírica consumível», para usar uma expressão consagrada, mas que nada têm a ver com o que entendo por poema.
Rui Lage (Porto, Portugal, 1975)
A poesia tem sido, consoante os poetas e as épocas, resistência e desistência. Desistência, na sua forma mais gravosa, enquanto cedência: ao diktat da instituição literária, à norma poética vigente, ao “estilo do período”. Resistência quando se faz ao arrepio – quando é indócil, pedindo o termo emprestado a Rosa Maria Martelo. Resistência quando exorciza o presente, quando sopra os fumos do instantâneo e do imediato, desembaciando os nossos olhos doentes de novidade. Porque nunca quieto, porque não coincidente com qualquer instância ou momento do ser (sabemos-nos sempre passados, ou a passar), o presente verdadeiramente não existe, é um espectro, mas um espectro que nos vaporiza e dispersa. A austerocracia que nos foi imposta funda-se no circunstancial e no contingente, como se os temores e humores de umas quantas entidades abstractas pudessem raptar o futuro de povos inteiros. A poesia resiste a essas tiranias quando amassa o tempo da lentidão, quando se assume como recuo face à civilização da velocidade fútil, quando dá sentido às coisas que foram esvaziadas de sentido pela tecnocracia – cabe-lhe dar significância ao insignificante (e ao insignificado). Nesse sentido, quase poderíamos dizer, em modo algo pessoano, que a poesia resiste desistindo. Resiste conjurando a materialidade do passado, com que tece as malhas para enredar a imaterialidade do presente: para retardá-lo, mesmo sabendo que essas malhas são largas e que nenhum peixe, por mais miúdo, deixará de passar. A poesia tem-nos ensinado, tal como a filosofia, que nós não somos, mas que nós fomos, e que o tempo (a sua passagem, aquilo que faz de nós criaturas em perda constante) nos empurra para o futuro, isto é, para o desconhecido (e para a morte). É por isso que essa materialidade do passado que vem exorcizar a imaterialidade do presente abre a possibilidade do futuro: o Portugal futuro de Ruy Belo, por exemplo, lugar “aonde o puro pássaro é possível”. Não obstante Ruy Belo continuar morto.
A poesia carece de um olhar empenhado, solidário, arriscaria mesmo dizer um olhar apiedado (mas não piedoso). Assenta-lhe bem a ética de Lévinas, “l’éthique du visage”, a ética do rosto – do olhar – impossível de esquivar, do olhar que nos solicita, que pede que nos interessemos e nos responsabilizemos pela sorte do outro, sobretudo do outro que é alvo de violência e intolerância. É aqui que poesia e política (politikós, feita pelos e para os cidadãos) se deveriam tocar. Também neste sentido ela é resistência, quando, com os seus parcos meios, com a sua pobreza, procura resgatar o outro ao esquecimento e ao nada.
A poesia resiste ainda, por fim, quando não desiste de perseguir a beleza: a beleza incómoda, servida fria, não a beleza formatada, inane e lustrosa. Cada vez mais uma arte crepuscular, a poesia desaparecerá de vez se desistir de articular a beleza, por mais que a beleza nos pareça uma quimera, vítima da usura e de maus-tratos. Se desistir da beleza a poesia corre o risco de reduzir-se a mais uma forma de escapismo entre as tantas que hoje nos são oferecidas, em vez de se cumprir como lugar de refúgio (de resistência lenta e austera). Mas vemos que a beleza está à beira de ser derrotada pelo estilo, pelo dinamismo, pela moda e ilusões afins. Porque a estética que domina a arte do nosso tempo é a estética (e onde é que já vimos isto?) das ruínas – nada mais em moda que detritos, edifícios vazios, e, por contiguidade, pessoas devolutas, desistentes, esmagadas. Mas então que fazer do halo que irradia, ainda e sempre, de todas as coisas e de todos os seres, essa radiação cósmica de fundo, ou matéria ejectada, com aspecto de vela, quando as estrelas sucumbem incapazes de resistir à própria massa?
Vasco Graça Moura (Porto, Portugal, 1942-2014)
Abordar a questão nos termos genéricos em que é posta permite uma série de desenvolvimentos e jogos de palavras. Posso dizer, como é evidente, que a poesia pode ser (não que deve ser inevitavelmente) uma forma de resistência contra a opressão de natureza política e social, contra as ditaduras, contra as privações da liberdade individual ou colectiva.
Mas depois o casuísmo acaba por baralhar as coisas: no século XX, há poetas mais ou menos de direita que são bem mais importantes do que muitos poetas mais ou menos de esquerda que se foram apresentando como resistentes encartados. Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Ezra Pound, Saint-John Perse, Vitorino Nemésio, valem mais do que todo o Neo-realismo e a poesia dita, por definição, «anti-fascista» ou empenhada… Salvam-se Miguel Torga, um grande poeta que nunca abdicou de se elaborar também como resistente, e um Carlos de Oliveira, cujas preocupações literárias transcendem os pressupostos e as intenções de que parte.
Será, claro, uma boa questão, procurar a resposta do Surrealismo. Mas para este a transgressão pretende-se tão geral, tão corrosiva e tão profunda, que se trata mais de destruir o institucionalizado e de fazer, diziam os surrealistas, coincidir a poesia com a vida em termos revolucionários, isto é, trata-se mais de destruir do que de resistir. De resto, quase toda a poesia surrealista é muito má, em minha opinião, só deixando de o ser quando e na medida em que os poetas escapam à cartilha – caso do melhor Alexandre O’Neill e de muito pouco Cesariny. Nesse ponto, um certo tipo de humor e a ideia de «uma resistência» coincidem. 
É claro que há poetas «resistentes» cuja poesia não tem propriamente a ver com essa postura: o caso de Eugénio de Andrade é muito interessante. A pouca poesia que escreveu com alguma intenção política quase não se distingue muito da restante nos processos estilísticos e metafóricos e é, creio, toda ou quase toda posterior ao 25 de Abril. No tempo em que uma atitude de resistência, no sentido político, se podia pôr entre nós, a sua poesia não tem nada a ver com isso. Mas ele mesmo a considerava uma forma de resistência implícita, no plano do metaforismo erótico, propondo-se como libertação contra uma série de tabus sociais pouco interessados nas pulsões e obsessões do corpo. 
Por outro lado, também posso encarar a questão de uma perspectiva mais genericamente antropológica e dizer que a poesia é uma forma de resistência do ser humano contra todos os obstáculos redutores (tanto a guerra como a doença, tanto a morte como as catástrofes, tanto a ditadura como a banalização e o convencionalismo, tanto a hipocrisia e o politicamente correcto como a estupidez).
Para lançar mão de uma terminologia talvez mais própria da segurança social (aliás em crise, nos tempos mais ou menos amorfos que correm), se a poesia pode resistir é porque, mesmo no seu registo mais amargurado, constitui uma «prova de vida».