A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?
Inquérito realizado por Pedro Serra.
En cuanto a la poesía como forma de resistencia a la opresión, a los regímenes totalitarios y a la intolerancia, debo decir que no creo, por desgracia, que pueda jugar un papel muy destacado en la pérfida coyuntura Capital-Industria Militar-Consumo que nos subyuga. La poesía puede ser, en este contexto, más que resistencia punto de fuga de un cuadro feo que es la sociedad. La poesía ofrece perspectiva y permite creer en la posibilidad de una resistencia –lo cual ya es mucho–, pero no puede detener la descabezada máquina capitalista ni le quita el sueño a los codiciosos.
No plano explícito e superficial, à tona do visível, pode ser usada como modo de reacção declarada, sim, às vezes, quando se levanta com vontade ou mesmo sem querer, pequena, rouca ou grave, contra o esmagamento das tantas caras dos poderes, abusos ou mesmo perplexidades, e pode ser nesse caso boa ou pode ser ruim, e pode ser sozinha ou pode haver outras muitas formas de como por ela resistir, de certeza hoje mais contundentes e apreciadas. Pode ser portanto forma de resistência expressa, talvez marginal, mas também pode não ser, pode ser até de desistência explícita, sem abandonar nunca a sua certa marginalidade ou resguardo, sem deixar de se filtrar hoje mais do que nunca noutras formas de Arte, Meio, Suporte. Pode até à tona desistir daquilo que empurra a materialidade da existência humana, como o seu teimar em arvorar-se em algo diferencial ainda prova, e assim também ser uma forma de resistência evidente. Pode por certo sê-lo até pelo puro invólucro visível de língua –como eu estou provando nestas linhas, pois apesar de convocado à trincheira que me marca o meu bilhete de identidade me resisto pacificamente por ela a vestir determinado uniforme. E pode não ser…
Mas o que não deixa nunca de ser a Poesia, noutro plano mais profundo, entranhado, metafísico, é implicitamente resistente, creio, pois nela, como na esgrima, seja no ziguezague do verso ou na filtração para outras formas de Arte, Meio, Suporte, também há uma capacidade de acender luzes no coração das pessoas –ou no que se convencione em chamar centro neurálgico dos sentidos, estritamente no cérebro. Uma capacidade terrível e também olímpica como esse estranho desporto. Tamanha, que pode levar o nome dos deuses mesmo que eles não existam.
E tomo proposta e frases de uma formulação mais ampla que escrevi e li uma vez ao público do Correntes d’Escritas de 2007. Como é costume, à mesa de convidados tinha sido lançado um lema mais ou menos enigmático que devia provocar as falas: o nosso era “A Poesia é um segredo dos deuses”. O que escrevi e li só naquela e para aquela ocasião guardei até hoje. Creio que partilhá-lo agora responde (demoradamente) melhor este inquérito quanto a modos de resistência e àquilo a que a Poesia resiste.
essa sorte de esgrima
Correram rios de saliva e tinta, durante séculos, tentando explicar o que Poesia é, e essa frase, “A Poesia é um segredo dos deuses”, é só uma linda-linda frase no meio da corrente, hoje Correntes. Frase positiva. Cheia de possibilidades de glosa, especialmente glosável pelo lado dos seus partidários, se os houver. Aqueles que, de princípio, forem adeptos, como talvez todas as pessoas que vieram tão cedo aqui nos ouvir, podem concordar com a frase, mas também haverá quem abrigue a secreta constestação e venha aqui reunir argumentos científicos ou de experiência –contra, é claro. E também queremos dar. Portanto, branco, preto, gama intermédia. Vamos percorrer os matizes e não contentar ninguém.
Correram rios de saliva e tinta acerca do que Poesia é, e não se pode negar que existam conflitos, sérios, entre aquilo que pode ser bebido neles, entre aquilo que pode ser dito ou aprendido numa sala de aulas, e aquilo que se aplica no fazer poemático. Coloquemo-nos no ponto de partida óbvio, didáctico, para atingir o outro, dilemático, partamos daquilo que na universidade, ou mesmo antes, se aprende sobre a poese, para lançar o debate. Aprende-se naqueles rios da tradição que na raiz da poese já anda no grego um sentido de criação, mas não só; que Poesia é essa coisa nos livros que não chega bem às margens, mas não só; que Poesia pode ser um palavreado efeminado que rima, mas não só; que os grandes poetas sempre atravessam os fluxos de escrita posteriores, mas não só; que, especialmente, verso é uma coisa e Poesia é outra. Mas não só, e paremos por aí.
Talvez a distinção destes dois últimos conceitos seja o ponto de partida necessário, e sem conflitos entre teoria e prática, para colocarmo-nos no plano onde se move a propositiva frase. Verso é uma coisa e Poesia é outra coisa. Pode haver poesia sem verso e pode haver verso sem poesia. A poesia aparece quando se entra nos sentimentos, na transmissão de pensamento, na idealidade transfiguradora das coisas, no sobrenatural. Eis o território dos deuses. Da frase.
Portanto “A Poesia é um segredo dos deuses”…? Ainda não –continuamos no preto mas já vamos, de qualquer modo, com a frase. Entramos no território branco, muito bem, retirado o verso à sua condição em que a explosão da linguagem de Rimbaud o confinou, e ascendendo no ar em que cabe a expectativa de deuses. Mas, para além do “ser segredo dos deuses” ter algo de tautológico, tanto como dizer “o sal é salgado” (o segredo, o escondido, o que não deve ser revelado, o mistério, o enigma, o que já é próprio só de deuses), falta esclarecer quem são esses deuses, esses seres supremos, entes superiores, sobrenaturais, eternos, infinitos. De que lado da transmissão é suposto colocar.
Vejamos: a frase é um desafio para propor a divindade a quem consiga penetrar o sentido poético de uma linguagem artística, musical, especialmente verbal…? São deuses os que conseguem penetrar os arcanos e receber a transmissão do pensamento poético, entrar no enigma poético…? Então, senhores leitores, leitoras, deviam aproveitar e sair já procurar o silêncio das salas de leitura, procurar os seus livros onde se encerra o segredo transfigurante, aquele que só os deuses conseguem sentir. Corram experimentar! Eis, a divindade ao seu alcance, comprem na feira do livro passagens para o céu olímpico…!
Mas, não se atropelem ainda, porque cabe a outra possibilidade, a mais abusada, a de que o Olimpo já é dos poetas: será por acaso a eles que se refere realmente a frase…? São os poetas os detentores do segredo…? Certo que há indivíduos superiores aos demais em saber, poder, beleza, mas –desenganem-se as pessoas que madrugaram tanto– nem todos são poetas. Mais bem existe uma triste opinião contrária, e não só a nível popular: Agustina Bessa-Luís, que já passou por esta mesa, escreveu que o poeta é um homem que se queixa, ou que se um homem de trinta anos chora é imbecil ou poeta. A equivalência não deixa lugar a dúvidas, imbecil ou poeta. E mesmo um dos pais simbólicos deste encontro, o poveiro Eça de Queirós, escreveu o conto “Um poeta lírico” em que nos dá o típico exemplar com corpo de tísico triste, grego, Korriscosso, prendido a um trabalho humilhante num restaurante por amor de uma criada, Fanny, que não o compreende, porque ele “é só um grande homem –em grego”, porque ele só pode escrever as suas elegias na língua materna.
A nível popular, no mesmo registo em que no ano passado falava de druidas no lupanar, referindo-me aos críticos literários hoje, teria que deixar ficar os poetas à porta dos prostíbulos, hoje, prendidos de amores por alguma bela prostituta, sempre, mais ou menos da mesma maneira que o Korriscosso de Eça de Queirós pela sua Fanny, em todo o caso sem dinheiro (já sabem que Poesia e dinheiro são inconciliáveis) para entrar no bordel.
Isso no nível popular e de modo geral, é claro, pois casos haverá em que o poeta tenha como pagar, seja convidado de borla, ou até chegue a montar o seu próprio bordel. De qualquer modo, comportamentos nada favoráveis a alimentar um politeismo como o sugerido na frase a favor do poeta, pois ele ainda é visto em geral como um ser estranho, à margem, sonhador, boémio, aquela imagem do romantismo europeu do século 19. Mais do que um deus, visto como um indivíduo que vive ao deus-dará. Um tipo que reunido com outros da mesma condição só provoca um deus-nos-acuda. Eis todo o deus que em geral lhe é concedido… Mas do preto, e pela gama intermédia, vamos agora abrir passagem ao branco.
Já teriam comprovado, à vista desta mesa, como tudo isso está errado, em especial a imagem dos poetas. Há mais imagens ainda, nas que até parte da mesa sem dúvida se assumiria, mas todas distorcendo a realidade de estar seres humanos por trás, e escondendo que pode haver um trabalho poético racional, lúdico e no entanto sério, com as palavras, que pode questionar o estabelecido e propor ou interpretar outras formas de viver, sentir, escrever e pensar. Que um ser humano pode ser capaz de realizar uma transmissão numa linguagem rítmica ou musical, tanto melhor se assim acontece, e até pode ser capaz de o fazer mesmo sem usar o verso, com talento mas trabalho. E isso até com linguagens não verbais. O verso é poetizante por comportar um ritmo, mas só com o ritmo não se faz Poesia. Nem sequer se faz música, ainda que é um princípio, ainda que a linguagem musical se emparente com a verbal empregada na Poesia… E é neste momento, quando mais parece que nos afastamos da frase proposta, que mais nos aproximamos dela e do branco, empíreo, por outras palavras: aproximamo-nos, ao invocar vocábulos como mistério, a vocábulos como mística.
O conceito de deus, o próprio vocábulo, é apenas um símbolo para envolver o desconhecido do ser. E todos os seres cá de baixo, poetas e leitores de poesia, estamos carregados de enigma, não somos nós próprios mais do que enigmas, pois ignoramos um dos termos da relação que nos faz existir. Nos esforços para decifrar o enigma de nós próprios e da nossa relação com o mundo intervém o mistério da Poesia. Do mesmo modo que, impressionadas por um sentimento de dependência impotente, as pessoas projectam os seus desejos e os seus medos num ser superior que foi capaz de satisfazê-las e defendê-las, e dá o nome de deus absoluto a isso, é aceitável que desde um politeísmo poético hipostasiemos cada uma das múltiplas manifestações desse absoluto que percebemos por meio das linguagens artísticas, musical, verbal.
Mesmo para o inventor da filosofia do século XX, que nos persuadiu da morte de deus, mesmo para Friedrich Nietzsche, “Os Poetas Tornam a Vida mais Leve”, mesmo que seja provisoriamente. E “os poetas e os romancistas são os mestres do conhecimento da Alma”, escreve Sigmund Freud, “eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda”. No entanto, “o Poeta não é um pequeno deus”, afirmou Pablo Neruda na entrega do Prémio Nobel, “o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não se julga deus”… Atingimos o branco empíreo conscientes de a frase ser uma soberba licença poética na que podemos acreditar porque nos Torna a Vida Mais Leve.
Na verdade, a Poesia hoje é “considerada um objecto de luxo ou actividade ociosa e anacrónica, assim como criar falcões, estudar heráldica, praticar esgrima ou qualquer outra actividade considerada distante da realidade” (Cláudio Daniel, em entrevista à Et Cetera, 7, 91). E, com efeito, adestrar aves de presa, estudar a arte de descrever brasões de armas, ou praticar um desporto a que a invenção da pólvora retirou possibilidades, por muito que os esgrimistas digam dele que é um estilo de vida, parecem actividades algo anacrónicas. Sem embargo, até do anacrónico se aprende, especialmente se tiver condição olímpica, como a esgrima.
A espada e o florete vêm equipados com um sensor na ponta da arma (no caso do sabre fica dentro do corpo), e quando um esgrimista toca o outro, o sensor faz acender uma luz. Como na esgrima, creio que na Poesia também há uma capacidade de acender luzes mas no coração das pessoas (ou no que se convencione em chamar centro neurálgico dos sentidos, estritamente no cérebro). Uma capacidade terrível, também olímpica. Tamanha, que pode levar o nome dos desuses, mesmo que eles não existam.
Actividade distante da realidade? Actividade inútil…? Certamente. Cavar um buraco para fazer dele uma fotografia não parece com efeito útil. Cavar um buraco para fazer um poço e ter água parece muito útil. E, contudo, quem nos garante que não existam mais pessoas a acalmar melhor a sua sede na fotografia do que na água do poço? Quem nos garante que certas boas fotografias não tenham mais utilidade para o que se convenciona em chamar alma do que certos poços? Inclusive no terceiro mundo, onde comida e bebida são mais urgentes que os desejos da alma, acaso aí não se precisa o sonho do poço, a necessidade da ideia para quando a fome, a sede efectiva, cheguem…? Dizem que se o ser humano deixa de sonhar morre, que, se o acordas insistentemente quando vai sonhar, morre. As fotografias, a literatura, a arte da escrita e as outras artes, a Poesia, são tão imprescindíveis para a vida e sobretudo para a felicidade dessa vida como a comida e a bebida, porque achar-lhe o sentido é imprescindível.
Vestir roupa é imprescindível quando abrigar-se é imprescindível, e basta um saco quando há frio, e serve a cortina se estiveres desesperado; mas vestir roupa que o seja, vestir roupa até que agrade, é imprescindível quando já conseguiste abrigar-te, quando, abrigado, consegues poder seguir sonhando como seguir a abrigar-te. E lavar o corpo é igual de imprescindível se queremos suportar-nos pelo sentido olfactivo, mas quando este sonha aparece o perfume…
A escrita, a Poesia, é um dos perfumes da vida, é essa sorte de esgrima que toca nos sensores da alma, que acende constelações de luzes de modo pouco explicável, enigmático, e que por isso merece o nome dos deuses. Mesmo que eles não existam.
[Eis o sentido implícito da perenidade da sua resistência, e o modo e a quê, a meu ver]
Evidentemente, no toda la poesía asume estas posiciones. Y hay poesía que, más que resistir, convalida la destrucción cotidiana del mundo. Muchas veces sin darse cuenta. Es el caso de los poemas “moralizantes”, o los que de alguna forma representan el mundo, reproduciéndolo. Desde mi punto de vista, la poesía solo es resistente cuando destruye el mundo, cuando asume que el fenómeno poético ocurre exclusivamente dentro del lenguaje, y que si hay algo que la poesía puede renovar, aunque sea con rupturas muy humildes, es su propio dominio.
La poesía resistente puede darse en cualquier contexto, no veo por qué tenga que haber una limitación. Cada sociedad destruirá el mundo a su manera, cada comunidad asumirá sus propias políticas de limpieza y recuperación del lenguaje. Y entre estas diferentes formas, puede que haya pocas similitudes. En suma, creo que lo resistente de la poesía no solamente está en la forma, sino en la intención de destruir para renovar.
La poesía se resiste a todo, es decir, a todo lo que forma parte de la esfera lingüística de lo cotidiano. Pero insisto: destruyéndolo. No puede haber una resistencia positiva.
Hacer arte y artesanía con el lenguaje nos enseña –debería enseñarnos— a hacer arte y artesanía con la vida, puesto que somos seres medularmente lingüísticos. Y ésta última es una tarea inesquivable… Nuestra vida, señala Zygmunt Barman, “tanto si lo sabemos como si no, y tanto si nos gusta esta noticia como si la lamentamos, es una obra de arte. Para vivir nuestra vida como lo requiere el arte de vivir, como los artistas de cualquier arte, debemos plantearnos retos que sean (al menos en el momento de establecerlos) difíciles de conseguir de entrada (…). Tenemos que intentar lo imposible.”
Antes, había afirmado René Char: “Parece que la poesía, por los caminos que ella ha seguido, por las pruebas que ha resistido para merecer su nombre de poesía, constituye la posta que permite al ser exhausto y desmoralizado volver a encontrar fuerzas nuevas y razones frescas para perseguir la presa o la sombra una vez más”.
Y Deleuze, en una conferencia que tituló “Qu’est-ce que l’acte de création?”, proponía justamente que la creación artística (en todas sus formas) radicaba en su resistencia. Con sus propias palabras: “los libros de filosofía y las obras de arte tienen en común la resistencia, la resistencia a la muerte, a la servidumbre, a lo intolerable, a la vergüenza, al presente”.
Muchos más nombres ampararían esta visión desamparada: Eduardo Milán, Claudio Rodríguez (“estamos en derrota, nunca en doma”), Antonio Machado (o Juan de Mairena, para quien de nada sirve “la libre emisión de un pensamiento esclavo”), Blanca Varela, Wisława Szymborska (“Nada en las paredes/ y solo la humedad que va cayendo./ Aquí hace frío y está oscuro.// Pero un frío y una oscuridad/ de fuego apagado./ Nada, pero después del bisonte/ pintado con ocre.// Nada, pero una nada pendiente/ después de una larga resistencia/ de cabeza agachada./ Así pues, una Nada Bella./ Merecedora de letras mayúsculas./ Una herejía ante la vulgar nada,/ no convertida y orgullosa de la diferencia.// Nada, pero después de nosotros/ que estuvimos aquí,/ y nos comimos nuestros corazones/ y nos bebimos nuestra sangre”). Quien persigue presa o sombra en el corazón mismo de un lenguaje inasible y refractario, poesía que evita repetir los lenguajes devaluados (del poder, del discurso, de la propia poesía). Que se resiste a sí misma, desde luego, y se resiste al poeta, al mismo tiempo que resiste cualquier intento de mediación o depauperación pues aloja el disenso y la individualidad, evita la visión gregaria y uniforme de gran parte de los lenguajes que nos rodean (y a la vez conforman), se escabulle y no se deja someter a los principios de deshumanización, legalidad, legitimidad o publicidad que intentan constreñir la experiencia de lo humano en términos de lógica postindustrial.
Resistiéndose a ser una mercancía cultural específica cuyo valor es simbólico y funciona también como valor de cambio, la poesía, consciente de sus límites y sus fronteras, genera fricciones en el mismo sistema poético que la alberga, encarna la turbulenta imposibilidad de decir lo idéntico en términos idénticos y tiende a expulsar tanto lo banal como lo instrumental, trazando un arco amplísimo en el que entran lo sublime, lo irónico o lo absurdo, lo alto y lo bajo, lo lírico y lo antilírico, lo repulsivo y lo bello, moneda y cisne, Eros y Tánatos, lo queer y la primera pared de la primera cueva –aquella en la que escribe Szymborska–, y desde luego, el cuestionamiento mismo de la lógica binaria en la que se enredó esta respuesta, pero que es un arco que se tensa y da siempre en el blanco; que alcanza el vuelo del pájaro en tanto vuelo, en tanto trayectoria despojada de su propio deseo de la forma. Y también forma.
Incluso aunque no resista siempre, sino solo en ciertos contextos (ciertos autores, ciertos textos, ciertos fragmentos del lenguaje que quedan como astillas horadando la tradición misma del lenguaje y su astilla), y en realidad responda a nuestra propia necesidad (vuelta deseo) de situar lo poético en el territorio de lo refractario, seguiría diciendo –en voz baja, claro, pero continuaría–, que frente a la deshumanización en todos sus rostros, la poesía nombra aquello que se resiste a las convenciones, a lo aceptado sin cuestionamiento, a lo inhumano, al olvido y a la muerte. Y que cuando de veras merece la pena, se resiste a sí misma. Como se me resiste a mí para traerla hasta este lugar.
Solo por eso, la poesía es resistencia en si misma: resiste a ser “moderna” o “comercial”, resiste el abandono de los editores mayoritarios y el público general, resiste, y aún así avanza silenciosa, creándose y renovándose desde ese margen del sistema literario ( y otros sistemas) en el que habita.
Esa existencia “marginal” acerca la poesía a otras marginalidades que encuentran en el lenguaje poético un medio de expresión ideal. Por eso la poesía, en contextos sociales, políticos y culturales determinados, es el cauce más habitual y, en ocasiones efectivo, para expresar la resistencia, las reivindicaciones, la lucha, la denuncia… Otras características que suelen adjudicarse al género lírico (como su proximidad con la música, el ritmo, la excepcional relación del yo lírico con el lector, etc.) son la excusa perfecta para convertirse en la expresión base de la resistencia.
Pero habría que situarse un poco para desarrollar esta idea. Cuando vinculamos poesía y resistencia, generalmente estamos pensando en la poesía de intención política; sin embargo, yo preferiría, por un lado, una mirada más general, más abarcadora; por otro, me parece necesaria una pregunta previa acerca de ese carácter político.
Cuando pienso la vinculación poesía-resistencia, pienso primero en una resistencia existencial. Es decir, en cómo la poesía busca, construye lugares en los que sería posible sentir el pulso de la existencia; donde se podría acoger un sentido, más allá de la falta de sentido; donde sepodría vivir. El poema como lugar habitable.
Quizá solo en el artificio de la argumentación sea posible separar ese espacio solitario, en que cada uno ventila las cuentas con su propio existir, de un latido político, colectivo. Pero me parece importante poner la resistencia en primer lugar ahí, donde la identidad se juega, se construye o se disuelve, donde cada uno debate consigo mismo si le es posible –o en qué condiciones, o con qué movimientos y cambios– decir yo.
Si luego paso a preguntarme por la poesía de intención política, me asalta la convicción de que la poesía no es cosa de temas. Creo que el valor político que tiene, sin duda, la poesía no aparece más incisivamente cuando habla de política, cuando analiza problemas políticos o sociales, que cuando habla de otro asunto cualquiera. Que la potencia política de la poesía es igual a su potencia poética, hable de lo que hable.
No es fácil explicar esto en el marco que ofrece un cuestionario; prefiero siempre ir a los textos, en vez de hablar en términos generales, y eso no es posible aquí. Partiría, en todo caso, de la experiencia de que el poder, el sistema, la dominación de clase –llamémoslo de cualquier modo en que podamos entendernos– trabaja de manera preferente en el campo del lenguaje: moldea la lengua para dar sentido a sus lógicas, para hacer impensables otras lógicas que se le opusieran, esconde y falsifica la realidad, termina determinándola a través de las palabras. Y que este trabajo permanente de control y modelado de la lengua es el principal de sus mecanismos de control social y político, por encima de los económicos o los policiales. Aquí sería muy útil poder analizar con calma cómo ha evolucionado el viejo concepto de “sentido común” hasta nuestros días, o detenernos en cómo usaba Breton la metáfora de la jaula en el Primer manifiesto; me conformo con mencionarlo.
Para mí, el valor que tiene la poesía como espacio de resistencia política arraiga ahí. Dicho muy rápidamente: entiendo la escritura como la búsqueda de un lugar de lengua-mundo personal que, según lo anterior, solo podría darse como crítica de la establecida. En la medida en que el control del lenguaje es político, el poema siempre es también político, incluso si la conciencia del poeta, su ideología, no lo reconocen. Toda verdadera poesía es un atentado contra la dominación, un gesto de resistencia.
Si pienso en la escritura concreta, solo me interesan aquellos poemas en que la reflexión política se integra en un flujo existencial, indistinta de la intimidad o el paisaje, de las lecturas o los sueños, los trabajos o los días.
Por ejemplo, un poema reciente: la secuencia VI de Le jardin d’encre [El jardín de tinta], obra todavía en curso, de Bernard Noël.
Entre otras cosas. Pero el concepto de ‘resistencia’ se ha de alargar también, y sobre todo, al lenguaje utilizado en el poema. Y al resto de ingredientes que lo configuran. Todo ello emplazado fuera de los límites de lo acomodado, de lo previsto. Ahí hay que ir a buscar siempre al poema, en un lugar donde oro y harapos se confunden. Ahí hay que resistir, más allá de eso otro que llamamos ‘literatura’.
2. ¿Lo es siempre, por definición?
En última instancia, sí. Pero, claro, la acepción del verbo resistir es elástica. No debería identificarse con una acción de efectos inmediatos ni con una poesía de combate ni con la agresividad verbal o temática que puede constituir el poema. Hay otras maneras más eficaces de resistir. En la inadvertencia, por ejemplo. Yo creo en eso.
3. ¿O tan sólo en determinados contextos – sociales, políticos, culturales?
La poesía no es cosa de contexto. Precisamente la que se brinda a su coyuntura es la que antes desaparece, la que antes deja quincalla y ruido bruto en los oídos. Y nada más.
4. ¿Cómo puede resistir la poesía, y a qué resiste?
Tal vez estas dos cuestiones enlazadas se han contestado más arriba, implícita o explícitamente. La poesía, pues, resiste en esa voluntad de no ceder ante los lenguajes usurpadores, que lo empañan todo para devorarlo así, en una especie de ósmosis mortal. Resiste, pues, en su posibilidad de constituirse en intemporal aun tomando apariencias locales muchas veces. Virgilio, Rimbaud, Pessoa, Lorca, Eugénio de Andrade… se me ocurren de pronto esos nombres propios que exceden sin querer las costuras de los mundos que ofrecen en su poesía. Y es que la capacidad de resistencia del poema no está a menudo en la voluntad del autor; más bien en una autonomía y un alcance que nada tienen que ver con las expectativas de quien lo escribe; y esa es su verdad última.