Inquérito Poesia e Resistência (Brasil)

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito realizado por Célia Pedrosa e Ida Alves. Os depoimentos de António Cícero e Salgado Maranhão foram recolhidos por Luiz Fernando Valente.

LyraCompoetics

Angela Melim (RS-Brasil, 1952)
Acho que pode haver poesia explicitamente política e de resistência, no sentido de afirmar ou defender um ideal libertário e humanista e essa poesia ser boa. E penso que pode haver resistência num sentido mais amplo, mas ainda político, na poesia, pelo fato de não se poder conformá-la à moldura do valor monetário, do prestígio, do poder, por mais que se tente.
Annita Malufe (RS-Brasil, 1975)
Gosto de pensar na poesia como um modo de resistência à morte. Não necessariamente à morte física/orgânica/biológica (embora o limite seja de fato ela), mas a todas as formas de morte que encontramos aqui mesmo, na nossa vida cotidiana, a todo momento. Não sei se são todas as poéticas que podem ser definidas assim, mas me interessa um tipo de poética que se define por isto, por este ato de resistir a tudo o que impeça o movimento das coisas, as mudanças, a passagem da vida, seu processo inesgotável, sem freio, sem regras. Penso em algo simples, às vezes um detalhe muito sutil. Pequenas coisas que, no dia-a-dia, nos desencorajam a mudar, a nos mexer, a criar, variar, desencaixar, destoar. Muitas vezes estamos tomados por um hábito, por um vício qualquer, ou por uma sensação de tédio, impotência, ou ainda por modelos que em qualquer instante se impõem como corretos e ideais. São pequenas mortes que nos acompanham. Penso nos poderes (mais ou menos instituídos), nas morais que daí decorrem, nas imposições de uns homens sobre outros, na ditadura da comunicação, do mercado… ou na simples presença obrigatória dos clichês, dos lugares comuns, em que vivemos imersos. São formas de paralisar, mortificar, fixar, instituir. E que não são exteriores apenas, mas que estão gravadas intimamente nos nossos corpos. E me parece que o “poético” é algo que se esquiva a isto tudo, que tenta criar saídas, novas vias, modos imprevistos, sensações inusitadas, resistindo à morte, à paralisia, à acomodação, à depressão. Uma espécie de olhar que não se acostuma, ou corpo que não se habitua com a vida, que está sempre meio desacomodado, surpreso, em estado de nascimento, como nos versos de Murilo Mendes: “Ainda não estamos habituados com o mundo./ Nascer é muito comprido.”.
Antonio Cicero (RJ-Brasil, 1945)
Sim. A poesia pode ser considerada como uma forma de resistência à redução da apreensão humana do ser à dimensão puramente utilitária e instrumental.
Na vida utilitária, usamos nossa razão e, em particular, a razão crítica, para lidar, para conhecer e para controlar o mundo que nos cerca, de modo a fazê-lo satisfazer nossas necessidades ou caprichos. A palavra “crítica”, não nos esqueçamos, vem do grego kritikh/, que vem do verbo kri/nein, isto é, “separar”, “distinguir”, “decidir” etc. Criticar é separar ou distinguir.
Já que dar nomes às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades são manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa. O pensamento teórico, por exemplo, distingue os conceitos de meio e fim, sujeito e objeto, substância e propriedades, matéria e forma, significado e significante, corpo e espírito etc.
A razão crítica efetua na prática semelhantes distinções, antes mesmo de tematizá-las ou de nomeá-las teoricamente. Elas são condições para que possamos conhecer e utilizar as coisas que há: para que possamos conhecê-las de modo a utilizá-las, e utilizá-las de modo a conhecê-las. Os próprios conceitos de conhecimento objetivo ou de objetividade do conhecimento, por exemplo, não seriam possíveis, caso a unidade do ser não houvesse sido cindida pela razão crítica em sujeito, por um lado, e objeto, por outro.
Mas a apreensão utilitária e instrumental do ser, embora absolutamente necessária, não é a única possível. É também possível uma apreensão estética do ser: uma disponibilidade tal às suas manifestações que as distinções utilitárias, instrumentais, estabelecidas pela razão crítica deixam, momentaneamente, de ter a última palavra. Evidentemente, porém, não seria possível alcançar tal apreensão através da simples renúncia à linguagem. Isso, caso fosse possível, não passaria de uma regressão ao inarticulado. A poesia não pode nem simplesmente recusar a linguagem nem simplesmente submeter-se à linguagem prática ou cognitiva. Não lhe seria possível nem desejável apagar a luz da razão crítica.
O que a poesia pode fazer e efetivamente faz é usar a linguagem de um modo que, do ponto de vista da linguagem prática ou cognitiva aparece como perverso, pois se recusa, por exemplo, a aceitar a discernibilidade entre significante e significado, que constitui uma condição necessária para usar as palavras como signos, e as toma como coisas concretas.
De maneira geral, a fruição da poesia exige mais tempo livre do que a fruição de outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo de jornal, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um poema é necessário dedicar-lhe tempo. Numa época em que todos se queixam de falta de tempo, é evidente que sobram argumentos para aqueles que pretendem não haver mais, nos tempos modernos, lugar para a poesia: para aqueles que afirmam que a poesia ficou para trás; que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo.
Pois bem, penso o contrário. É exatamente nesta época de aceleração desembestada que a poesia mais se faz desejável. Com efeito, se praticamente não temos mais tempo livre, é porque praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está preso. Preso a quê? À apreensão utilitária e instrumental do ser. Não estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e pessoas.
Nada e ninguém jamais valem por si, mas apenas como um meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.
Ora, precisamente a concentração que a poesia exige de nós representa o acesso a outra dimensão, a outro espaço-tempo, não só desvinculado dessa linha de montagem utilitária, mas incompatível com ela. A rigor, o poema não serve para nada. Por isso, ele esbanja o tempo do leitor ideal, que se deleita a flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. É nesse sentido que a poesia é uma forma de resistência.
Armando Freitas Filho (RJ-Brasil, 1940)
Entendo que a poesia é escrita, principalmente, nas entrelinhas do discurso geral. A boa poesia, então, vem sempre cifrada exigindo releituras. Por que cifrada, eu mesmo me pergunto? A resposta que tenho à mão, mais especulativa do que afirmativa, é que o poema moderno, objeto complexo, é fruto de vários cruzamentos, e, constitutivamente, por isso mesmo, é mais “biológico”, transgênico, do que lógico; não é, enfim, um gênero puro e simples. O verso branco sujou o papel para sempre. Ela só resiste, mesmo que para poucos, por causa dessa sua natureza intrínseca, adaptada ao ar rarefeito da recepção, que tem sensibilidade parecida, por ser um instrumento de ponta da linguagem, como um Fórmula 1 que abre o caminho para veículos, viagens, velocidades e ruas mais rotineiras.
Chacal (RJ-Brasil, 1951)
Sou de uma geração utópica. Nasci em 1951. Vivi o movimento estudantil e o movimento hippie de 17 a 21 anos. Nunca consegui me desvencilhar dessa mania de mudar o mundo. Talvez por me sentir desconfortável na camisa de força da gramática e querer reinventar o jeito de se expressar e se comunicar com as pessoas, talvez por querer tomar pra si a luta contra as injustiças do mundo. Sei que minha vida toda se pautou por essa tentativa de fazer as coisas do jeito que acho melhor. Isso começou com a utilização de meios artesanais – mimiógrafo – para publicar meus poemas, depois distribuídos de mão em mão. O que era um projeto para ter autonomia na realização e distribuição de um trabalho, acabou por virar exemplo de independência do processo tradicional do livro. O mundo institucional nunca me atraiu. Creio que ele é o responsável por esse mundo que vivemos. Mesmo as que mais me encantam, como as universidades, mantenho um pé atrás. Mas respondendo mais objetivamente se a poesia é uma forma de resistência, acredito que sim. O fato do poeta recriar a linguagem, torna-o um exiled on main street, uma pessoa para quem as regras e os cânones devem estar sempre sendo questionados e ultrapassados. E isso, é claro, contamina a forma de ver, pensar e agir no mundo. Em contextos muito conservadores e repressivos, essa característica básica do poeta se exacerba, tornando o poeta um combatente na linha de frente contra ditaduras e tiranias diversas. No mundo mercantilizado que vivemos, o poeta deve estar focado na luta desesperada em busca do humano em todas as relações. E talvez a melhor arma seja justamente a poesia, a música, a dança, as artes em geral, que transtornam, subvertem a lógica do capital e do consumo desenfreado e recola o ser humano diante das suas emoções profundas e seu básico instinto.
Claudio Daniel (SP-Brasil, 1962)
Vivemos, sem dúvida, num tempo cruel, tempo de venenos e serpentes. O que pode fazer o poeta nesse trágico labirinto de esfinges e sibilas que recitam falsos enigmas e premonições do apocalipse? O poeta, para mim, é um criador de realidades; pelas relações inusitadas entre as palavras, ele articula novas formas de pensamento e, logo, novos modelos de mundo. Esse é o potencial subversivo da linguagem, é a sua ação política, digamos assim. O artista questiona as formas viciadas de viver, sentir e pensar, reflete criticamente sobre a lógica do poder estabelecido, e não se pode cumprir esta missão através de formas estéticas convencionais. É preciso criar sempre novos instrumentos de guerrilha cultural, pois não é possível questionar estruturas sociais sem colocar em xeque também o mecanismo do pensamento e a linguagem que são produzidos por essas estruturas. Quando você utiliza formas de escritura tradicionais, ainda que abordando temas “sociais”, não estará fazendo nada além de reproduzir os modelos de idéias vigentes na sociedade. Ao romper com esses padrões e propor outros modos de comunicar idéias e sensações, o poeta não está conduzindo uma insubordinação aparente, mas uma transformação profunda, que produz novos conteúdos, numa rebelião contra o banal imediato e o lugar-comum. Este é o papel da renovação estética: ser também uma ruptura com padrões rotineiros de consciência. Claro, a poesia, por si só, não irá transformar o mundo. Isto cabe à esfera da ação política, e portanto à sociedade organizada em partidos políticos, sindicatos, ONGs e outros agentes sociais.
Donizete Galvão (MG-Brasil, 1955)
ESCUTAR O MUNDO

Para os poetas que, como eu, não são críticos, falar de sua poesia pode parecer um exercício de narcisismo e pretensão. Parece-me que tudo o que tenho a dizer está mais bem dito no corpo dos próprios poemas. Claro que existe uma intensa reflexão anterior, mas que não ganha a clareza que exige o texto escrito. Ate hoje acho que o autor que melhor expôs sua poética de forma breve, objetiva e despretensiosa foi Francis Ponge, em Métodos. Recorro a ele sempre que me assaltam as dúvidas sobre porque escrevo. Há um ditado que diz que água benta e pretensão cada um usa o quanto quer. Temo que explicações de poemas e de suas chaves resultem em banalização e vaidade. Por isso, vou ficar nas linhas gerais de como entendo a poesia e peço que me perdoem por algumas citações, mas é que me valho do pensamento alheio quando o meu está capenga.
Para começar, sempre persegui o real na poesia. “Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso”, diz Sophia de Mello Breyner Andresen em um dos seus depoimentos. Minha poesia está fincada no chão de Minas, fala da terra, da pedra, dos bichos, das ferramentas, dos restolhos, daquilo que não é poético. Falar das coisas é também buscar para o homem um lugar de justiça. Penso na poesia como uma maneira de desalienar o homem e colocá-lo em outra relação com o mundo que o cerca e religá-lo com seu sentimento interior. Nesse sentido, a poesia ganha sim um significado de resistência.
Estar sempre com os olhos muito atentos ao mundo real, às coisas do quotidiano, tem também suas desvantagens. Reconheço que minha poesia é de voz baixa, grave, pouco afeita aos altos vôos de imaginação, às metáforas em brasa e ao tom elevado. Trata-se de uma poesia em tom menor, que para muitos pode parecer, com razão, realista e pouco imaginativa.
Como todo poeta, a atenção é fundamental para que surja o poema. Li certa vez um trecho que citava Walter Benjamim, dizendo que a “atenção é a forma natural de oração”. Depois, soube que, na verdade, trata-se de um verso de Malebranche. Com outras palavras, Simone Weil diz que a atenção absoluta é uma forma de prece. Estar atento às coisas, vê-las com o mesmo olho inaugural da criança, penso ser uma das qualidades do poeta. É dessa atenção absoluta que ele “redescobre” o sentido primordial das coisas. Imagino a poesia como uma educação continuada dos sentimentos. Para isso, é preciso manter a perplexidade, a capacidade de espanto. Tudo se mostra ao poeta com outro relevo de tal forma que ele se emociona por descobrir essa fala vinda do “mundo mudo.”
Para mim, o poeta também trabalha em um mundo de incertezas, num tatear no escuro. Quando a luz de Apolo chega e fulgura, ele deve estar atento para tentar captar isso. Só que essa fulguração, esse alumbramento é brevíssimo. A poesia está sempre escapando desse círculo onde queremos fixá-la. Ficamos com a sensação de que a aragem dela passou por nós, mas que ficamos com uns fiapos e fragmentos. Não há técnica que dê conta desse contínuo tatear. A cada poema se ergue uma técnica que se desfaz com ele. Nada disso será útil em um próximo poema. Sempre houve essa tentação de desvendar o fazer, de produzir a frio aquilo que lhe foi dado ou emergiu no meio à escuridão. Para mim, essa tentativa de dominar racionalmente toda a técnica de construção do poema chega a um impasse. É uma longa discussão que não cabe aqui, mas lembro os dois ensaios de E.M Cioran e María Zambrano sobre a poesia de Paul Valéry.
Portanto, não creio na poesia como um artesanato em que o poeta, a cada poema, aperfeiçoando seu domínio e produzi artefatos cada vez mais perfeitos. Não acredito que, mesmo os poetas mais construtivistas, escrevam um poema a partir de um planejamento rigoroso. Alguma faísca deve surgir, alguma coisa deve deflagrar o poema. Claro que a partir daí começa um longo trabalho de escrever e rescrever, cortar e modificar. Acredito que os poemas devem ficar um bom tempo “chocando” para depois serem relidos e refeitos, se for o caso. Ainda acredito que o poema começa no inconsciente, que germina ali e demora a se externar.
Eu acredito no poder evocatório das palavras. Trabalho dentro de uma mitologia particular, familiar ou da minha região. Ainda estou ligado à memória como o grande poço aonde o poeta vem sempre beber. Vejo que a poesia ainda tem um poder de consagração de pessoas, coisas, paisagens. Eu não gosto que as coisas passem, virem pó, e fiquem sem registo. Eu quero registrar todo esse mundo minúsculo, frágil, em vias de desaparecer e o embate do homem com a metrópole. De certa forma, com todo o pessimismo e melancolia que ponho em meus versos, ainda creio no poder expressivo da palavra. Talvez por ingenuidade, não cheguei ao ponto do negativismo absoluto que vê a inutilidade de todos os esforços. A leitura de Ascese de Netos Kazantzákis, que o querido José Paulo Paes traduziu, me marcou profundamente. Identifiquei-me com aquele niilismo heróico, que mesmo desacreditando, não pode deixar de agir. Reconheço que, como todos os poetas contemporâneos, sou tomado por grandes dúvidas sobre o lugar da poesia. Entretanto, luto contra a minha tendência melancólica de entregar os pontos. A ação continua sendo necessária, embora sabendo que o mundo está desencantado. O poeta deve continuar atento. A poesia é a liberdade. E. portanto, tem seu grau de gratuidade.
Ela chega a um número reduzido de pessoas. Perdeu muito da sua ressonância. Acredito que ela ainda seja necessária para restaurar o vigor da língua, renová-la ou expandi-la. Para aqueles que têm uma vida interior, a poesia ainda existe ou resiste. Mesmo assim corre o risco de se tornar um exercício esotérico, praticado por um grupo reduzido.

Dora Sampaio (Ribeiro) (Mato Grosso do Sul-Brasil, 1960)
Perguntas são o meu fraco. Acredito que elas existem, sobretudo as insistentes, não para produzirem resposta mas para aferirem o quanto do passado ainda carregamos num determinado momento. Cumprindo assim o delicado papel de nos fazerem lembrar o quanto as respostas são marcadas pelo tempo. E o tempo enodoa de modo diferente quem lê e quem escreve poesia.
Como fazedora de poesia, falo a partir de um lugar muito restrito, contaminado e irreal, que é o momento da criação; no qual se inventa a liberdade como experiência absoluta. Ali estão em jogo tanto o leite e o mel que se tira dos rios como muitos dos flagelos que vivem-e-não-vivem dentro de nós e nas nossas fronteiras.
Quando leitora, porém, estou quase sempre ensopada nos meus limites temporais e culturais e suas agruras. E a forma como uso o texto poético está subordinada à minha visão de mundo. Procuro estímulo, peleja, sustentação, refúgio, vingança, esperança, etc. E não erramos quando fazemos isso porque a poesia se constrói como um desafio às linguagens presentes, procurando o avesso como saída. Uma saída, não uma solução. Ela procura oferecer ferramentas para pensarmos a possibilidade de novas narrativas. O ser humano tem uma fome cega fome de novas histórias. E só a poesia tem esse material em abundância: pois coloca o discurso (qualquer que ele seja) sempre sob suspeita. Resistência?
Acho que seria algo mais próximo da resiliência.
Poetar é se deixar fustigar pela circunstância sem se submeter a ela. Já um leitor de poesia contemporânea pode viver a experiência intelectual de estar neste planeta agora e continuar usando os seus óculos escuros.
Abril, 2019
Edmilson de Almeida Pereira (MG-Brasil, 1963)
Penso a poesia como um fio, dentre outros, que constituem o tecido social. Por isso, ao mesmo tempo em que ela se exprime de maneira autônoma através dos elementos formais que a diferenciam de outras modalidades de discurso, se entrelaça com a sociedade e revela o quanto há de histórico e concreto em seus próprios elementos formais. Sendo assim, por um lado, a resistência pode ser vista como algo inerente à poesia, pois ela se articula no interior dos sistemas de linguagem, propondo representações que transcendem as funções pragmáticas desses sistemas. Nesse caso, o desejo de desmascarar as armadilhas da linguagem se converte em força vital da experiência poética. Por outro lado, a historicidade da poesia (que nos recorda a inevitável, mas, por vezes esquecida, historicidade do poeta) pode transformá-la em resposta a contextos específicos. A resistência, nessa condição, vem a ser o prolongamento das expectativas compartilhadas entre o poeta e o grupo com o qual se identifica. Em geral, essas expectativas se nutrem de certas tendências ideológicas, cujo rastreamento crítico demonstra, em algumas situações, a frutífera dimensão política da poesia e, lamentavelmente, em outras, a perda de rumos da poesia, quando esta é associada a práticas políticas degradantes. Em face desse jogo, permeado de tensões estéticas e ideológicas, um dos grandes apelos da poesia está nas escolhas a serem feitas pelo poeta. Pessoalmente, aposto no teor utópico da poesia. Vejo-a como resistência quando se faz luta contra o abastardamento e a banalização da linguagem e, por extensão, das formas de pensar e de agir. Pensamento, linguagem e ação são elementos que se entrelaçam mutuamente. Não permitir que essa aliança se esfacele, tendo a poesia como um canal de reflexão e partilha afetiva, acredito, é um modo de reiterarmos nossa densidade de sujeitos históricos que, explicitamente ou não, aspiram a alguma margem de permanência.
Fabio Weintraub (SP-Brasil, 1967)
A primeira ideia que me ocorre diante da pergunta é o célebre ensaio de Alfredo Bosi, “Poesia-resistência”, publicado em O ser e o tempo da poesia, de 1977. Nele, o crítico se debruça sobre a dimensão estética do conceito de resistência (originário do campo ético), examinando, por meio de diferentes exemplos, de que maneira se realiza o potencial contraideológico da poesia naqueles momentos em que a invenção se convencionaliza e a palavra da tribo pede um sentido mais puro, que não sirva à justificação do mal presente, um sentido que abra fendas no pensamento hegemônico, totalitário e pseudototalizante.
Bosi dá destaque às formas estranhas assumidas pela poesia moderna diante da consolidação da ideologia burguesa (o “autismo altivo” dos símbolos fechados, a palavra-esgar, o grito, o silêncio), formas que, segundo ele, se ligariam menos ao “ser” da poesia que à possibilidade de sua existência em uma configuração histórica determinada.
Dessa perspectiva, ele distingue diferentes faces da resistência: a mítica, voltada para a ressacralização da memória coletiva, para o desrecalque da infância; a lírica, em que a interioridade, a melodia dos afetos é mobilizada como defesa contra a reificação; a metalinguística, de cunho satírico ou paródico, antídoto contra os automatismos da língua e do gosto; a profética, em chave utópica ou apocalíptica, que põe em xeque as coordenadas do presente pela imaginação do futuro ou de sua supressão.
O referido ensaio oferece indicações de sobra para reconhecer que a poesia não é, por definição, de modo atemporal, uma forma de resistência à ideologia, ao estilo e à mentalidade dominantes, às rotinas sociais, ao status quo. Mesmo em momentos de crise do gosto e dos padrões de desempenho formal, quando o estilo se divorcia da práxis e se apresenta como resíduo, disfarce, impostura, mesmo quando cresce a distância entre as expectativas do público e as necessidades expressivas do poeta, o dissenso introduzido por sua palavra pode desempenhar papel ambíguo, combinando vetores ideológicos e contraideológicos, contentando-se às vezes com uma crítica acomodatícia ou, no extremo oposto, com uma negatividade aporética.
Tudo isso falando em termos muitíssimo abstratos e genéricos. No entanto, no caso da poesia contemporânea, talvez seja possível especificar um pouco mais o que entendo por resistência. Por exemplo, diante do desafio de figurar as tensões inerentes à experiência urbana nas megalópoles brasileiras, marcadas pela violência, pela desigualdade socioeconômica, pela privatização/militarização dos espaços públicos (como as zonas centrais “decadentes”, ocupadas pela população de baixa renda e cobiçadas por especuladores imobiliários), a poesia que se ocupa desses fenômenos constitui alguma espécie de resistência simbólica? Ao figurar a violência ela propõe algum tipo de mediação subjetiva ou se limita a incluir a violência, a refleti-la sem sobre ela refletir? Há espetacularização da catástrofe e da abjeção, em sintonia com o voyeurismo pornocapitalista dos reality shows? Ou representação indireta de angústias socialmente produzidas? O poeta paira acima do desastre, demiurgo intocado, ou é levado de roldão, ferido no coração da frase?
Penso que tais questões podem ser formuladas até em relação a obras infensas a temas “sociais”, pois a resistência depende menos do realismo temático que da descoberta de soluções formais que não sejam arbitrárias, ditadas de antemão pelo padrão de gosto dominante, decorrendo antes das exigências que a matéria dos versos, seja ela qual for, impõe à sensibilidade do poeta.
Por fim, creio que a resistência depende também de uma relação com o legado da tradição poética que não seja pacificada e consumista, que não “museologize” o passado nem se sirva dele de modo combinatório, como se não fosse necessário distinguir o vivo do obsoleto, como se os tesouros da tradição não decorressem de uma longa conquista e pudessem ser herdados (pilhados?) sem repetidos esforços de atualização. E aqui me sirvo da ideia de retradicionalização frívola proposta por Iumna Simon em artigos como “Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século” (Novos Estudos, n˚ 55. São Paulo: CEBRAP, novembro de 1999, p. 27-36) e “Condenados à tradição” (Piauí, n˚ 61. Ano 6, outubro 2011. Rio de Janeiro: Editora Alvinegra, 2011, p. 83).
Por fim, no que concerne ao meu trabalho como poeta, penso que, principalmente a partir de Novo endereço (2002) e Baque (2007), o interesse pela “intimidade dos párias” (pela vida dos moradores de rua, doidos, malandros, desempregados…) e a exploração do universo da doença e da desfiguração podem indicar certo “ideal” de resistência aos discursos antiurbanos, higienistas (alimentados pelo pânico da heterogeneidade social), à demonização ou medicalização da tristeza (com a correspondente “despolitização” da felicidade), à eugenia de mercado, à criminalização da miséria etc. No entanto, penso que esse ideal, que nem sempre se realiza a contento na luta vã dos poemas, não se limita à obsessão por determinados temas e motivos, mas implica também a busca de certa instabilidade no processo compositivo. Instabilidade que decorre da mistura entre diferentes registros de linguagem (em que o coloquial se abre às vezes a expressões solenes ou fora de uso e a gírias específicas), baralhando a origem da enunciação; do contraponto entre lirismo e narratividade; da desmontagem de certos elementos proverbiais; do uso rebaixado de imagens de cunho mítico ou religioso, entre outras coisas.
Esse desejo de “instabilizar” a escrita, de engripar o discurso e forçar a percepção para fora do prumo me parece fundamental em face dos amortecedores e lubrificantes de que se serve o discurso ideológico.
Às vezes até, quando dizem que faço mais crônica que poesia, que meus versos não passam de “prosa recortada”, que, ao mimetizar falas alheias com mistura de registros, peco por excesso de artificialidade…, fico a pensar se, na base da crítica, não há padrões de gosto cristalizados ou apriorismos judicativos quanto ao que sejam os limites do verso, as fronteiras de um gênero ou os usos da fala (nesse último caso, sem levar em conta as liberdades linguísticas possíveis em um trabalho de caráter “não documental”). Claro que tal pensamento pode não passar de uma forma de autoengano, um jeito de converter em vantagem certas deficiências ou impasses de formalização.
A saída, sempre provisória, é seguir explorando novas formas de desequilíbrio sem trapacear com a gravidade nem se orgulhar da queda.
Glauco Mattoso (SP-Brasil, 1951)
IRRESISTIVEL RESISTENCIA [soneto #4994]

Parece recorrente esta questão:
Resiste a poesia? Resistente
seria a tudo e todos? Ou somente
alguns poetas podem ser, ou são?
Respondo por um cego que a visão
perdeu e revoltou-se: o bardo sente
a dor mais dolorosa, o sol mais quente,
o amor mais amoroso e o chão mais chão.
Si amar é resistir, resiste a lyra.
Si odeio quem me opprime, ella resiste.
Si anseio ver, resiste quem delira.
Em summa, resistente por ser triste,
ou mesmo quando alegre, o bardo tira
de lettra a dor, da lagryma faz chiste.

[Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]
Guilherme Gontijo Flores (Brasília-Brasil, 1984)
Recuso-me a aceitar que a poesia seja qualquer tipo de coisa sempre, ou por definição. Tendo a pensá-la como tudo que é da ordem do humano: indefinivelmente aberta às possibilidades da vida, germinada e dispersa em contextos, mesmo que um poema possa se desdobrar em muitos contextos para além do momento da sua produção. Dito isso, se pensarmos a resistência de modo muito amplo, como um modo de estar no mundo e produzir outros mundos que não exatamente este, até mesmo a poesia produzidas por elites aparentemente conservadoras pode apresentar graus interessantíssimos de resistência social, política ou cultura. Um poema pode resistir à ordem do tempo, à demanda da morte. Pode resistir ao senso comum, que por vezes transforma o cerne em clichê vago. A resistência que mais me interessa, e que talvez esteja na chave das poéticas ocidentais dos últimos séculos, é a radicalização — mesmo que num gesto mínimo, num átimo apenas — de uma reorganização espácio-temporal que possa reconfigurar o convívio que temos, ou seja, reconfigurar os mundos (im)possíveis, a partir da precariedade constitutiva. Pra isso, o poema não pode ser apenas um apontamento de recusa, mas precisa ser abertura a uma coletividade ainda inacabada, porta de acolhida e mutação. Rever o olhar sobre um pé de ipê pode ser uma resistência ao olhar da paisagem como pano de fundo das vidas; rever os sentidos de uma coletividade pode ser uma resistência aos modelos estatais que, ao louvarem o mito do indivíduo meritório, solapam a vivência das multiplicidades em relação contínua em esforço de convívio. Acredito que a poesia feita agora, neste país, deve ser de resistência plena; o que não quer dizer, de modo algum, que ela precise ser o tempo inteiro uma poesia que trate a política stricto sensu. A poesia é política de qualquer modo, mesmo quando se cala. É o que vemos agudamente n’O homem revoltado de Albert Camus, quando afirma já no começo: “Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde seu primeiro movimento”. Então ela pode resistir a muitas coisas, até mesmo ao ímpeto de sempre se pronunciar sobre tudo (pensemos nos modelos das redes sociais, proliferando um império da opinião contínua); no entanto, a pergunta que me faço — e que não me respondo, nem sei se um dia terei resposta clara — não seria então “a quê” a poesia resiste, mas “com quê”. Por que a resistência que procuro é uma destruição fertilizadora, demanda modos de união que estamos por inventar.
Guilherme Zarvos (SP-Brasil, 1957)
Por definição poesia é uma forma de Existência
Do estar sendo
A transmissão do saber, posteriormente o
Olhar
Faz da atividade simbólica oral da poesia
Verdade
Dos Gregos
Caminhar para
Poesia
De
Resistência
E, recentemente, Lorca, antes
Edgard
E no Poema Sujo – Gullar
Em Hamlet
Shaks in the pair
Poesia e resistência ou Poesia e oráculo
É um processo de denominação do Ocidente
Dialético e com consciência da
Desigualdade e das injustiças econômicas e
Preconceito SS SS SS SS SS
Há de ter resistência como Homem
Como Poeta Existência
O Clamor do Poeta ou a Fala de sua
Gente fruirá como frui tudo em
Prana e na Epifania. Inclusive a Beleza e o

H OO R R

Horácio Costa (SP–Brasil, 1954)
A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição?
A poesia é hoje uma forma de resistência. Nem sempre foi assim. Claro, há a expulsão platônica da república. Mas: Camões dedicou Os Lusíadas a um monarca que sequer leu o poema, mas lhe designou uma tença, e Tasso se apaixonou por uma aristocrata que achava, com razão, que ele era um pazzo – entre gênio e bufão. Sóror Juana compunha para uma corte vicerreinal na qual não entravam os seus conterrâneos, quase; ainda assim, teve que abjurar da escritura profana. Então, nem sempre é um índice de resistência. Entretando, na era de predomínio do mercado, na qual o discurso socialmente produzido de maior influência é o economês, e subsidiariamente o galimatias do direito, que no mais das vezes apenas o reveste de pedigree, pois, a palavra poética ergue-se em bastião. Resta saber se necessariamente em divergência a isso tudo que acabo de nomear, ou se apenas em diversidade. Porque tenho a convicção de que esse ser-bastião não necessita tematizar-se na escritura poética e penso que, para lá do tema, esse teor se afirma pelo falar fora dos limites preconizados pela discursália global da era dos mercados. Estamos tratando de contra-discurso devido a sua divergência expressa ou a sua diversidade constitutiva; portanto, seja como for, estamos falando de resistência.

Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?
A poesia é filha da história, como tudo. O enunciado parece simples, mas não é: não creio em um quid poético fora do tempo histórico porque não creio que a palavra poética tenha nada que ver com revelação nem com religião, isto é, com nada que se reclama para lá da história, no limbo da escatologia. O contra-discurso tem um estatuto interessante: procura perfurar o discurso dominante mas, devido a sua diversidade, não se lhe pode oferecer como modelo de reposição. Aponta sucessivamente para alteridades que desconstroem a centralidade desse logos global. Por isso, me parece que é com base a essa não normativização que tem o seu futuro garantido. Veja, a explosão do cânone literário, entre outras coisas, reforça a situação de desafio tácito a hegemonias discursivas que acompanha o falar poético no limiar da era da grande reprodução de informação, na qual nos encontramos.
Um adendo de professor universitário e de poeta que não cresceu nesse universo: fala-se muito do descenso da qualidade do texto poético em nossos dias, da improvisação, da má utilização da liberdade na rede. Sucede que a maior parte dos jovens que publicam poesia no ciberespeaço são isso mesmo: jovens. Os poetas mais estabelecidos se sentem menos familiarizados com tais esferas. Na medida em que esses jovens envelhecerem, e entre outros tópicos, passarem a aperceber da onipresença da história, seu texto também depurará. Sou otimista e creio que a poesia apenas está começando a dar o seu recado em nosso admerdável mundo nuevo. Sua resiliência também é um fato da história, em todos os quadrantes. A poesia é o trilobita do falar.

Leonardo Fróes (RG-Brasil, 1941)
SENSACIONISTA
Se fosse a sua vocação resistia é inútil lutar contra a natureza mas tinha horas de profundo desânimo a massa falhava às vezes não conseguia dar forma tinha de resistir às marés aos elefantes mesmo cogitações internas sobretudo as escureciam o teto resistir aos chamados à prática verbal dos duelos tinha de alimentar seus dedos de barro como tinha de comer papel resistir sem ofício sem pauta sem vitamina e sem camisa no vento tocando flauta ficar moldando sentimentos sem opinião confirmada sem garantia mutável como as folhas resistir às pirâmides às variações do corpo no tegumento dos cogumelos bebidos fabricar bolsões de ar sem saber viver assim vocação só tem de cumprir sair de manso do ardor das confrarias que torcem armam confabulam planejam tomam decisões importantes resistir à importância à catalogação das espécies à nomenclatura das coisas perdidamente desarticulado e confuso mas feliz perdendo pé perdendo a memória perdendo os primeiros dentes mas persistentemente tocando a mesma flauta invisível galopando entre sons imaginários árvores cabeludas vocação de fazer o nada com sua cara de leoa parda ficar parado batucando onde não existe suporte suportar as mordidas os beliscões na vaidade a cruz dos outros o leque de opções as bobagens continuar moldando o tato tateando tentando resistir ao desânimo ao joelho ardendo à coceira recolher-se cantando dinamitando carregado de alegria tristeza todas as variações impossíveis todos os xodós e quiçás.

(Do livro Argumentos invisíveis. Rio: Rocco, 1995)

Luis Maffei (BSB–Brasil, 1974)
A primeira resistência que a poesia oferece é à própria linguagem, material autoritário, difícil, desafiador. Para existir enquanto tal, a poesia precisa debater-se dentro do composto que a possibilita, e, estando sempre nele, dele tirar a cabeça, o resto do corpo, os membros, e nascer como estranha criança, suja, titubeante.
Se já nasce em estado inflexível, a poesia não é dada a obediências – ao bom gosto, por exemplo, detesta a poesia conceder, assim como ao mau, pois o gosto, se fora do paladar, não lha interessa. A poesia, ao menos o que entendo como tal, é, por si só, uma ética, posto que acusa o homem ao homem, põe diante de nossos olhos a extrema defasagem de nossa humanidade e a radical possibilidade de sentir que reside no estético. A poesia resiste até a quem a ama – enquanto a música, por exemplo, se impõe a nossos ouvidos para deleite ou fúria, a poesia, discreta, espera pelo leitor e resiste a ele, pois a ele só se dá a custa de muito trabalho. Mesmo esse doar-se é pleno apenas em sua precária instabilidade, ou partícipe de um devir a que chegamos com atraso.
Com poesia, aqui, estou pensando em poemas, e posso usar um termo que Jean-Luc Nancy, em Resistência da poesia, usou para o poético em geral: “acesso”. O pensador cogita a pluralidade, o que me leva a suspeitar de que a poesia resiste ao unívoco, não ao singular.
A poesia é resistente até mesmo em sentido pouco inusual: o de quase inquebrantabilidade. Resiste a poesia como resiste um resistente objeto, um copo, por exemplo – “Não toques nos objectos imediatos./ A harmonia queima”, escreveu Herberto Helder, investindo na loucura que há, poeticamente, nas coisas –, ou um piso. Se a poesia é o contrário do copo e do piso, pois não serve a bebericagens ou pisões, é também de beber e de andar; além do mais, as palavras “copo” e “piso” encontram-se à violenta disposição do poético. É a poesia inquebrável? Não, pois nada o é, menos ainda as coisas delicadas. Mas o que pode quebrar um poema antigo que dura muitos séculos a mais que uma peça de mesa duralex?
A poesia resiste, a poesia resiste a. Ruy Belo disse, em texto intitulado “Breve programa para uma iniciação ao canto”, prefácio a Transporte no tempo: “A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.”. Às ditaduras resiste a poesia, também a certas ditaduras brancas. Hoje, a poesia resiste à velocidade feita tolice e irreflexão, a supermercados e a fofuras. Resiste a poesia brasileira a certa poesia brasileira que resiste, com muitos sorrisos e pouco projeto, a ser poesia.
Marcos Siscar (SP-Brasil, 1964)
DO IRRESISTÍVEL
A poesia não é necessariamente uma forma de resistência, sobretudo se a pensamos em termos genéricos: “sociais, políticos, culturais”. Ocorre que ela se apresente, em determinadas circunstâncias, ao contrário, como uma forma de adesão ou, alternativamente, como uma forma de sublimação. Ela pode ser, evidentemente, como foi e tem sido, também uma forma de resistência social, política ou cultural, em diversos casos, muitos dos quais – sobretudo em contextos autoritários – envolveram e continuam envolvendo mortes, desaparecimentos, exílios voluntários ou compulsórios.
Independentemente disso, é interessante lembrar que a resistência, entendida como elemento característico do poético, já foi bastante requisitada por críticos e por poetas, inclusive de modo menos imediatamente pragmático, menos imediatamente instrumental ou “político”. Não nos faltam, por exemplo, propostas para que entendamos a resistência poética pela via da nomeação inaugural, da utopia, ou então pela “ação restrita”, pela ênfase em outras modalidades de uso da linguagem, graças até mesmo a negação do político. Concluo que a própria insistência do tema “poesia e resistência” é relevante para se pensar o assunto. Não tenho dúvidas de que é. Mas, se o empenho crítico em relação ao tema prova que há um interesse em ver a poesia associada ao valor de oposição, nem por isso se pode deixar de constatar que boa parte daquilo que chamamos “modernidade” poética (ou seja, aquilo que somos, que gostaríamos de ser ou deixar de ser), historicamente, se assenta sobre uma postura resistente, retesada, tensa, qualquer que seja seu conteúdo; isto é, a poesia “resiste”, nesse sentido, qualquer que seja a interpretação que ela proponha do jogo de forças do qual participa.
Em outras palavras, se é verdade que a poesia se apresenta frequentemente no contra-fluxo ou na contramão, também é relevante notar que o faz colocando-se em situação instável, incômoda: nostálgica ou combatente, revoltosa; fragmentária ou inconclusiva; irônica mas também desejosa. O que há de incomodamente tenso na ideia de resistência tem a ver, no fundo, menos com a natureza da circunstância do que com o modo pelo qual a poesia se inscreve nessa circunstância, ou seja, em seu tempo e em seu lugar. No fundo, o que há de mais fundamental na ideia de circunstância, para a poesia, não é algo que se apresente como dado estável do ponto de vista histórico, linguístico, etc. Não é um ponto fixo no tabuleiro de forças já dadas. Por isso (complicação necessária para não reduzir muito o que entendemos como poesia), a tensão desconfortável ou atrativa da poesia está relacionada com seu ter lugar, com o modo pelo qual ela tem lugar.
Para responder a um questionamento sobre a relação entre poesia e resistência, eu falaria de tensão e de acontecimento. O tom (tonus, tensão) do poema é o modo ou a atitude pela qual este se coloca em relação (contraída ou elástica) com sua circunstância. O poema não está ancorado ou fincado na circunstância; também não se notabiliza por nadar contra a correnteza, simplesmente: ele paira sobre o naufrágio (retomando uma figura poeticamente bastante explorada) e, ao mesmo tempo, o nomeia, vórtice ao qual ele próprio se destina. Dizer que a poesia é de circunstância, nesse sentido, é dizer também que ela elabora a contração e a elasticidade no modo de uma instauração conflituosa, que é a de seu acontecimento. A datação ou a prática toponímica características da poesia não deixam de ser evidências dessa sedução ou desse desconforto na definição de seu tempo e lugar. O que está em jogo na datação ou na toponimía é o desejo de haver o tempo e de haver o lugar.
Por isso, se há alguma coisa que possamos chamar de resistência poética, essa resistência se manifestaria na relação tensa com a homogeneidade dos fatos e dos lugares, ou seja, com a estabilidade gozosa do mesmo (ou da mesmidade). Antes de ser uma oposição à autoridade histórica empírica – o que não deixa de ser, evidentemente – ela se manifesta no desconforto em relação ao controle do sentido. Ainda que as situações de restrição política sejam infelizmente muito comuns, não se pode deixar de expandir a restrição da liberdade a todos os fenômenos que impõem uma homonegeização (de fala, de expressão, de atitude, de destinação). Não é difícil perceber a maneira como, mesmo em “plena democracia”, muitos dispositivos culturais (publicidade, mercado, prêmios, políticas de educação ou de cultura), sob pretexto, por exemplo, de atenderem aos interesses da “maioria”, acabam servindo justamente a esse controle do acontecimento, a essa imposição de umtempo e de umlugar estáveis e homogêneos à experiência artística.
Reagir à homogeneidade seria uma forma de “resistência” política? Talvez. Mas é provável que a palavra já esteja muito gasta (talvez resista muito pouco, não seja propriamente aderente, escape-lhe a rugosidade necessária ao sentido ou ao efeito); talvez continue trazendo consigo resíduos não necessariamente assimiláveis do ponto de vista da crítica do homogêneo – a estabilidade do sujeito, a ideia de uma força exercida contra outra força determinada; além da própria determinação do poético no âmbito formal de um gênero.
Que palavra nos arriscaríamos a colocar no lugar da palavra “resistência”? Outras já foram aventadas. Por exemplo, resistir é também suportar. Aquilo que suporta, que tolera, que suporta uma carga, que carrega essa carga (a carga do sentido, a carga do dever), é também algo que se comunica com o “suporte” (por exemplo, da linguagem), com a tolerância do suporte, com a capacidade de aceitar ou de receber o acontecimento.
Há várias maneiras de reelaborar a resistência. Entretanto, no contexto da questão que me é endereçada, preferirei explorar outro aspecto – complementar – do mesmo problema. Preferirei dizer que as resistências da poesia e as resistências à poesia são parte necessária de um pensamento sobre a resistência como poesia.
Tenho tentado entender as resistências não simplesmente como função ou como estratégia, mas como ponto de partida da poesia; não apenas o modo como esta reage a coibições, mas também o modo como é capaz de suportar esse jogo de forças da resistência como parte de seu processo (criativo ou histórico). A resistência, nesse sentido, seria algo a ser levado em conta desde os elementos biográficos até os elementos históricos que fazem parte do acontecimento poético. É da resistência ao sentido que nasce o sentido (por exemplo, o sentido da resistência). Assim, a resistência não deixa de dizer respeito diretamente e imediatamente ao poético (como modo do conhecimento) e à poesia (como gênero historicamente situável), mas especificamente como parte daquilo que ela própria suporta e reelabora como verdade da sua situação.
Para encurtar, proponho associar a poesia ao irresistível. É o que me parece estar em jogo, quando se pensa a resistência como ponto de partida: tanto a resistência da poesia quanto a resistência à poesia. Explico.
Em primeiro lugar, a poesia é uma forma de suportar o drama do apagamento do irresistível. Dizendo de outro modo (para torná-lo mais imediata aos nossos ouvidos), poesia é aquilo que explicita o drama da resistência, o drama do descompasso entre o que decidimos e o que queremos, entre o que julgamos e o que podemos ver.
Poesia é o suporte que resiste ao apagamento daquilo que é irresistível. Ela está atenta para as implicações daquilo que é da ordem da “intuição”, da “inspiração”, do impulso, do deslumbre, da surpresa da adesão, da explicitação do pressuposto, das frases vindas de “lugar algum”, da sedução e do terror sublimes, de tudo aquilo que se apresenta como tal, antes mesmo de qualquer decisão consciente ou estratégica. Resistir ao apagamento desses irresistíveis me parece ser uma tarefa da poesia. O irresistível não deve ser denunciado nem louvado. Trata-se apenas de constatar que ele é um elemento necessário para o pensamento da resistência, qualquer que seja sua modalidade. E isso se vê em poesia, como poesia.
Ou seja: explicitar aquilo que não nos permite resistir é um aspecto importante do modo como a poesia trabalha com nosso interesse em resistir. Isso não anula sua força ou seu interesse, digamos, político. Ao contrário, estabelece uma interpretação do político como algo que deve ser entendido na relação com o irresistível, sem prejuízo do voluntarismo militante. O que chamo de discurso da “crise”, em poesia, tem sido, historicamente, um modo de pensar o irresistível, aquilo que emperra o raciocínio do tempo e do lugar homogêneo. A “prosa” não deixa de ser um dos nomes do irresistível para a poesia, hoje, aquilo por meio do qual ela se opõe a si própria.
Em segundo lugar, por uma perspectiva de modo algum dissociada da primeira, a poesia é também, para muitos, o irresistível, no sentido daquilo a que não se pode resistir. A poesia tem sido colocada (desde Platão, mas de modo peculiar nos dois últimos séculos) no lugar daquilo que personifica o destempero ou o despropósito do incontrolável. A poesia é aquilo que deslumbra, sacraliza, que conquista pela ilusão do sublime, que desencaminha a relação com a vida ao nos colocar na perspectiva da adesão ao etéreo, à ideia da distinção artística, de autonomia orgulhosa, de uma espécie de voz alienígena e, eventualmente, “autoritária”.
Ao personificar o irresistível, a poesia é, portanto, “elitista”; ela é o lugar de uma adesão a ser combatida. Não é propriamente resistente: ela é o objeto de uma resistência que se opõe à sedução do seu sublime. O resultado dessa resistência ou desse recalque (de acordo com o ponto de vista que possamos ter sobre o assunto) acompanha sintomaticamente a multiplicação das horizontalidades possíveis, a auto-regulação das paixões rentáveis, a intolerância a qualquer tipo de pensamento sobre a diferença que distingue e sobre a autonomia que desregula. Seria ingênuo deixar de constatar que, dessa perspectiva, o insistente mapeamento da “crise da poesia”, de sua falência ou de seu desaparelhamento contemporâneo, está estreitamente associado a estratégias de promoção ou de substituição cultural, em que as palavras de ordem da horizontalização ou do hibridismo espetaculoso não deixam de ter um papel.
A poesia para mim tem (ou tem tido) lugar. É (ou tem sido) meu modo de descobrir, de experimentar ou de suportar a tensão do acontecimento, de defrontar o que escapa a qualquer política e, ao mesmo tempo, de afrontar as políticas ou os discursos do “fato”. Outra maneira de dizer que a poesia, para mim, é (ou tem sido) o irresistível.
Michaela v. Schmaedel (São Paulo, 1976)
Entendo a poesia como uma forma de resistência, na medida em que ela busca sempre um meio de persistir, de sobreviver, não importa se em uma zona de guerra ou num país que esteja vivendo um período de paz e boa democracia. Gosto muito de uma definição do poeta russo Joseph Brodsky, que, numa entrevista, disse: “A poesia é um extraordinário acelerador mental”. Segundo ele, é a única forma na linguagem que une três elementos: a análise, a intuição e a revelação. E faz uma síntese. Dito isso, se observarmos esta capacidade da poesia como um acelerador do pensamento, um salto na capacidade de compreensão do mundo, podemos entender o papel que ela exerce como forma de resistência, já que nos serve como uma ferramenta para percebermos o mundo de uma maneira nova. A poesia, a boa poesia (assim como a boa arte), está sempre um passo a frente, neste sentido, muitas vezes, age mesmo como uma revelação. A poesia resiste como algo primordial na linguagem: a capacidade de transformar, em poucas palavras, a realidade (e também o passado e o futuro). Não é a que ela resiste, é como ela resiste o mais interessante.

Paula Glenadel (RJ-Brasil, 1964)

A poesia aposta

“Oui, mais il faut parier; cela n'est pas volontaire, vous êtes embarqué.”
(Pascal, Pensées)

Embarcada em meu momento de cidadã submetida ao governo de um “mito” político da pior espécie, penso que a poesia de um tempo para cá tem sido uma aposta em uma forma de resistência.
Como outrora Pascal elaborou o seu pensamento-provocação de abordar a questão da fé em termos de uma aposta sobre a existência de Deus, com a qual se tem tudo a ganhar e nada a perder.
Mas um Deus como o de Pascal não é um mito, ele é vivo e incerto, e até dialético em um sentido mais trágico.
O caráter de jogo da poesia moderna viria daí. Pois, enquanto o resultado da aposta não se define, o jogo vai acontecendo e a vida /a poesia/ vai se fazendo.
E viria daí também o caráter de fé que a poesia moderna assume. Uma fé paradoxal, como não podia deixar de ser, entretanto, transposta do âmbito do religioso para o âmbito do histórico.
Gosto de aproximar a poesia moderna dessa ideia – que, formulada em termos mais solenes ou mais suspensivos, marcou a experiência poética do século XIX em geral, e a do romantismo e simbolismo em especial. E certamente o surrealismo constituiu um importante ponto de transição nessa visão, ao apostar no maravilhoso, solúvel, dentro do cotidiano.
Entre mito e história, o surrealismo abriu, assim, a possibilidade de uma experiência que se dirige ao contemporâneo. Como exemplo de resistência poética, ressalta o trabalho de Breton com o feminino, que encampa aspectos míticos, mas os insere no campo minado da experiência histórica do século XX. Mélusine, aquela que atravessa a perda de uma ordem antiga e gere sua autopoiese fabulosa, é uma figura agudamente atual, para além do que seja o feminino.
Gosto de pensar que a poesia é hoje uma zona intensiva, onde se aposta com todas as forças na resistência como aquilo que permanece possível, ainda que também permaneça impossível. Nesse sentido, hoje, a tomada da palavra como ato poético é simultaneamente um ato de fé e um ato político.

Paulo Franchetti (SP-Brasil, 1954)
A possibilidade de se apresentar esta questão já nos traz um caminho de resposta, pois não creio que essas mesmas perguntas se formulassem com tanta clareza para as outras artes. Por exemplo, faria sentido manter a pergunta tal e qual, substituindo apenas “poesia” por “música” ou por “escultura” – e, dentro do domínio das artes da palavra, por “romance”, ou “conto”, ou ainda “teatro”. No caso da música, é certo que seria importante particularizar de que música falamos: música popular, música pop, música erudita, música experimental, música étnica etc. Já no caso da escultura e da pintura, não saberia como determinar melhor os termos, de modo que a questão pudesse parecer, como a que deu origem a esta resposta, razoável. Mais notável é a dificuldade de aplicar a pergunta a outras modalidades literárias: “o romance é uma forma de resistência?”; “o teatro é uma forma de resistência?”. Nestes casos, mais do que a dificuldade de delimitar os termos (romance de terror, romance de amor, romance social, romance policial etc) impõe-se o estranhamento da pergunta: quem a formularia, e em que situações? Já no caso da poesia, parece natural a indagação, mesmo que não restrinjamos o sentido do termo. E quando o restringimos, como o fez há mais de 30 anos um ensaísta preocupado com o tema, Alfredo Bosi, é apenas para especificar a maneira própria de um tipo de poesia constituir resistência ao que seria o mundo hostil do capitalismo O exemplo de Bosi é interessante não apenas porque a poesia é identificada, nos tempos modernos a resistência, mas também porque – como implicitamente reconhece que há poesia integrada, não resistente – é a resistência que passa a ser, para ele, a senda da “verdadeira poesia”. Ou seja, identificar poesia e resistência é também uma forma de qualificar. A “verdadeira poesia” é resistência; a falsa ou a não-poesia é aquela a que falta resistência. E, portanto, o verdadeiro cinema seria o de resistência, a verdadeira arquitetura, o verdadeiro romance etc. O que é o mesmo que dizer que, no limite, a arte em geral, na sociedade capitalista, é resistência. Ou ainda que só é verdadeira (ou contemporânea, no sentido de situar-se corretamente no seu tempo) a arte que consistir em resistência.
Se adotasse esse ponto de vista, responderia que sim, com a modalização necessária: que a verdadeira poesia é resistência, que na modernidade ela o é por definição, em qualquer contexto. Ou então não é arte. Ou seja, voltando ao mesmo ponto: a arte é resistência. Tese difícil de demonstrar, quando pensasse em casos concretos: a arte de Picasso é resistência? E a de Andy Warhol? O cinema de Hitchcock e Bergman? E o de John Ford? Os edifícios públicos de Niemeyer e as casas de Gaudi? A música dos Stones e a de Keith Jarrett? A literatura de Somerset Maugham e de Gabriel Garcia Marques? Não que fosse impossível, mas demandaria tal elasticidade do conceito de resistência que ele se tornaria inútil, ou então obrigaria a uma seleção drástica do âmbito do artístico, especialmente no que diz respeito às artes de apelo mais popular, como o cinema e a música. Na verdade, o que tal operação significaria, no meu caso, é que eu trataria de usar o conceito de resistência (ampliando-o e modalizando-o conforme a necessidade) para atribuir verdade aos objetos que julgo interessantes ou que estão sacralizados pela tradição. Só não seria assim se eu dispusesse de um ponto fixo de referência, sempre igual a si mesmo, que pudesse ser um aferidor da verdade e do reto caminho – a mente de Deus, por exemplo, ou a “essência humana”, apenas momentaneamente desvirtuada pelo capitalismo. Como não disponho, não posso responder nesses termos.
Prefiro, por isso, pensar no que a apresentação de uma pergunta como a que estou tentando responder significa. A começar pelo fato, a que acima me referi, de que ela não é usual sequer no campo de estudos das outras artes da palavra – exceto se pensarmos no conjunto delas: “a literatura é resistência?” –, mas nesse caso, imagino que a poesia esteja subsumindo os demais tipos de arte recobertos pela palavra “literatura”. E a terminar pela suposição, que ela implica, de uma unidade da “poesia” que dispense essa palavra de qualquer qualificativo. Passando pelo fato de que a modalização das perguntas subsequentes à primeira demonstram que a expectativa de resposta a ela seja positiva.
Minha intuição é que temos de ter um raciocínio de mão dupla: perguntar se a poesia é resistência é também perguntar se há resistência à poesia em nossa sociedade. E se a afirmação de uma não implica a resposta de outra. Se fizermos essa pergunta, porém, nos deparamos com a verdade de que não há resistência a todo tipo de poesia, mas apenas a alguns tipos.
Quanto à resistência mútua, João Cabral de Melo Neto, em textos do início dos anos 1950, apresentou um quadro muito claro. Para ele, a responsabilidade principal pela grave questão do abismo que julgava abrir-se entre o poeta e o público residia na forma e alcance do típico poema moderno, fechado ao leitor e de temática restrita. A resistência à poesia era, assim, uma resposta à inadequação do poema. Sua proposta de superação do impasse era que os poetas buscassem a comunicação com o leitor, fazendo poemas mais adequados aos tempos modernos, valendo-se inclusive das novas formas massivas de difusão da palavra, como era o caso do rádio. Com essa mesma preocupação nasceu também o movimento da poesia concreta brasileira, que buscava, num primeiro momento, a integração no universo dos produtos industriais e no mundo moderno, mas que em breve refluiu para a típica posição de resistência ao público, cujo gosto ou formação seria incapaz de gerar uma recepção positiva à poesia, e passou a ocupar o lugar clássico da vanguarda de produtora de poesia para um público futuro ou para poetas que preparariam esse público ainda inexistente.
Mas não nos devemos iludir: a falta de integração – ou de sucesso de público, para usar uma palavra crua – era de apenas um tipo de poesia: aquele que merecia a consideração crítica. Porque sempre houve poesia de grande receptividade, à qual normalmente se negou (e ainda se nega) o caráter de arte séria ou mesmo de arte. Basta lembrar, como contraponto à tese da incomunicabilidade da poesia no século XX, entre outras referências possíveis, as enormes tiragens de J. G. de Araújo Jorge (seu livro Amo!, de 1938, vendeu 80.000 exemplares) e da poesia psicografada por Chico Xavier (seu Parnaso de Além-Túmulo vendeu mais de 100.000 cópias – e continua em catálogo).
Essas reflexões trazem para primeiro plano uma forma de resistência que caracteriza a poesia moderna canônica que merece ser destacada: a resistência à perda do valor de novidade, ao valor de estranhamento que a linguagem poética deve ter para ser reconhecida como tal, a “resistência de fato faz parte da definição do tipo de poesia que identificamos como significativa e contemporânea, mas num nível complexo, no qual se combinam a recusa à repetição e a afirmação da autonomia do discurso poético. Ao mesmo tempo, suspeito de que a afirmação da autonomia tem sido muitas vezes confundida, de modo simplório, com a eficácia de estratégias que visam apenas provocar a resistência do público mais amplo.
Ainda uma última consideração – que apenas reafirma a minha incapacidade de responder às perguntas: a louvação da poesia como resistência é um dos grandes temas da literatura e da crítica moderna. Não espanta que ela tenha logo passado de tema ou descrição a prescrição. Nem que o caráter prescritivo se imponha, pois é um dos requisitos para a postulação de contemporaneidade – importante valor, qualificativo a que cada vez uma gama menor de produtos parece ter direito em nosso tempo.
Por fim, no que diz respeito à minha prática poética, percebo (também ao responder a este questionário) que há nela uma resistência de fundo: uma resistência a programas, à injunção de fazer sempre o novo a partir de um traçado histórico que define uma linha evolutiva, à ideia de que o leitor comum é dispensável ou, em princípio, inepto para dar conta da boa poesia, ou à proposição de que o mundo contemporâneo seja mais hostil à poesia do que qualquer outro mundo, bem como ao jargão crítico-poético trazido para dentro do poema ou à busca de procedimentos constantes, que funcionem como uma marca registrada ou uma garantia de procedência do produto. E já agora, no que toca a este momento, uma resistência à ideia ou bandeira da literatura como resistência. Ou seja, termino por perceber que possuo uma paradoxal resistência à ideia de resistência.
E é tudo que, como poeta e como estudioso da literatura, me ocorre dizer neste momento.
Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1951)
É trabalho da crítica, principalmente da crítica retrospectiva, mostrar de que modo os poemas de uma época dialogam com seu tempo, ou reagem contra ele, dependendo do poema, do poeta e da época; e um crítico arguto sempre vai conseguir argumentar que mesmo a poesia mais abstrata, a que mais sucesso tem no empreendimento de aspirar à condição da música, de uma maneira ou outra está sempre discutindo o seu tempo. Mas falar sobre poesia no Brasil, ou falar sobre a situação do poeta brasileiro, de agora ou qualquer outro tempo, é um pouco diferente de falar sobre poesia em geral, porque no Brasil, desde os primeiros tempos, sempre se exigiu do artista em geral, e do poeta em particular, que participasse do esforço de construir a nação, uma tarefa sempre vista como incompleta. Durante um século e meio, mais ou menos, o trabalho do poeta era menos de resistência do que de adesão a um projeto em andamento, no império ou na república, em épocas de maior ou menos liberdade. As neovanguardas de meados do século passado de certo modo encerraram esse longo período, na medida em que elas já partiam do pressuposto que o Brasil enquanto nação, enquanto ideia de nação, estava construído; o importante agora era inserir essa nação na modernidade (concretismo, poema-processo), ou dotá-la de instituições que a transformassem num Estado plenamente funcional, habitado por cidadãos que fossem cidadãos deveras (CPC, práxis): poesia agora era resistência contra as instituições arcaicas do país. A tropicália — a última neovanguarda, o derradeiro movimento literário propriamente dito da nossa história — há mais de cinquenta anos exprimiu da maneira mais categórica o fim de uma longa era: nossa identidade brasileira já está de tal modo formada e segura de si que não precisávamos mais provar que não éramos portugueses, ou franceses, ou americanos. Agora o iê-iê-iê e o bumba-meu-boi eram igualmente expressões nossas, a mulata e o LP de Sinatra podiam coexistir tranquilamente, sem a velha ansiedade que obrigara tantas gerações de poetas a se desculpar por viverem nos trópicos (como Gonzaga), ou a criar arquétipos idealizados de brasilidade (os índios de Gonçalves Dias), ou a perguntar a si mesmos o que, no final das contas, é ser brasileiro (Mário na Lopes Chaves pensando no seringueiro acriano). Para a tropicália, como para os movimentos imediatamente anteriores, era a hora de celebrar a conclusão da tarefa de nation-building, mas também de realizar a outra tarefa urgente: a da criação de um Estado, o que em 1968 implicava a criação (e não volta, por nunca ter havido de fato) da democracia — pois um dos paradoxos brasileiros é que a conclusão do construto Brasil coincidiu com dois longos períodos ditatoriais, separados por um interregno de menos de vinte anos. A celebração tropicalista, sabemos, terminou na prisão e no exílio. De lá para cá temos tido momentos de relativo otimismo e momentos, como o atual, de profundo desânimo; mas desde o fim da tropicália não houve mais movimentos com um programa, seja propositivo, seja de resistência, que tivesse como ideal a construção de uma nação brasileira. A poesia marginal deu a tônica do que viria depois: era a hora de cada um cultivar seu jardim; e se havia uma imagem coletiva do jardim da geração mimeógrafo, ele já não tinha mais a ver com o Brasil, e sim com um outro construto, transnacional: a nação de Woodstock, a contracultura. Todos os projetos que se colocaram desde então passam longe da ideia de Brasil: o panafricanismo, o feminismo, a identidade queer. São, cada um à sua maneira, projetos de construção, e por isso necessariamente de resistência, mais ainda num momento em que o racismo, a masculinidade tóxica, a heteronormatividade e uma religiosidade tosca e repressiva se transformam em programas de governo. Eu diria, pois, que a poesia, devido às nossas vicissitudes históricas, depois de um longo período de projeto construtivo de nação, de 1964 para cá tem tido um caráter de resistência, e desde o início dos anos 70 os projetos que há passam longe da ideia de nação.
Ricardo Corona (PR-Brasil, 1965)
A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê? Eis uma questão virtuosa para a incorruptível poesia. Seus corredores labirínticos, sutis indagações, sugerindo à poesia definir-se. Um sintoma próprio da poesia. Questões se abrem, pequenas e grandes, ansiosas em defini-la. E isso talvez quase a define, caso não resistisse a definições. A questão e suas sutis indagações, hidra de várias cabeças e cada cabeça uma sentença, implica as mesmas fugas do vivente que ousa falar com desespero do carinho extremo. Uma fala do coração. Uma fala qualquer, mas não qualquer fala. Os franceses e os ingleses dizem par coeur, by heart, e nós, de memória. Em qual supermercado; discurso; lojinha; secos & molhados; escritório; ministério de cultura; secretaria de educação? A de Ana Ajmátova resistiu ao bolchevismo; a de Nietzsche aos nazi; assim como se resiste hoje aos nóias capitalistas e à democracia de câmeras. A poesia resiste, sim. É o seu sentido. Resiste aos poetas, ao poético e à própria poesia, se pensarmos com Nancy (e eu penso): o seu sentido de poesia: sempre por fazer. Acordei com vontade de rodar pela cidade com a minha bicicleta Poesia. Será a bicicleta uma forma de resistir?
Rodrigo Garcia Lopes (PR-Brasil, 1965)
A poesia permanece como força de resistência contra a apatia, a automatização e pasteurização de comportamentos, de usos de linguagem e percepções. Em temposvelozes e saturados, em que tudo seduz as pessoas para longe do livro e paraperto da TV, da internet, dos celulares, IPods etc, a poesia ainda tem a missão de apontar e incorporar outros modos de ver, sentir, ser e estar no mundo.Acredito na capacidade crítica e na busca do estranhamento ao chamado “mundo real” que a linguagem poética pode exercer, cumprindo seu papel ideológico de ser intérprete de uma época, de questionar os padrões medianos de sensibilidade e sentido, e de provocar uma re-sensibilização no leitor. Ou seja, de”ensinar a sentir”, de ser capaz de recriar e criticar a realidade. A poesia (a arte da linguagem verbal), requer, ao contrário do que nosexige estes tempos excessivos e velozes, uma leitura lenta, uma maior atenção,o pensar e a reflexão que a sociedade do espetáculo (termo de Guy Debord) cadavez mais desconsidera. É, sobretudo, a capacidade crítica e na busca do estranhamento ao chamado “mundo real” (cada vez mais virtual) que a linguagem poética pode cumprir seu papel de intérprete de uma época, de questionar os padrões medianos de sensibilidade e sentido e de provocar uma re-sensibilização no leitor.
Salgado Maranhão (MA – Brasil, 1954)
Pela sua intrínseca gratuidade, e pela sua natureza de produto à revelia do mercado, a poesia é, de fato, um poderoso instrumento de resistência. Inadaptável a qualquer tipo de enquadramento ou tutelagem, ela tem atravessado os séculos como, talvez, o único fórum, ao nível da linguagem verbal, em que a psique humana se revela plenamente em seus conflitos incontornáveis. Todas as demais manifestações da arte ou do pensamento, de algum modo, cedem ao contexto social. A grandeza da poesia, no entanto, está em ser como o riso ou o choro da criança, imprevisível e desobediente. Irreverente e inventiva para falar a espíritos diversos, ela sempre foi colo e voz dos povos soterrados pela opressão. E nestes tempos niilistas e de hegemonia do supérfluo, é, ainda, mais renitente e altruísta o seu papel. O próprio poeta, quando surge, é de geração espontânea, não há fórmula nem escola para inventá-lo. Também não há empregador para os seus serviços. Ainda assim, quando uma voz, verdadeiramente genuína canta, uma luz misteriosa acende as mentes e os corações sensíveis. E cada um toma para si o que gostaria de ter dito. Ser agente secreto da alma humana, é a principal recompensa do poeta, a musa quer entrega e abnegação. Porém, se houver talento e uma vida inteira garimpando nadas, certamente, algum ouro virá. A poesia é um campo de provas do que há de mais secreto em nós.
Sérgio Medeiros (MTS-Brasil, 1959)
A poesia resiste ao romance. Posso explicar isso citando os meus livros. Mas também posso mencionar, para início de conversa, o encontro que tive há pouco mais de um ano, aqui em Florianópolis, com o poeta Régis Bonvicino. Eu lhe perguntei se ele já havia sentido desejo de escrever um romance. Ele disse que não poderia escrever um, porque isso implica criar personagens. O pior de tudo, segundo confessou, é ter de dar-lhes nomes e sobrenomes.
Eu concordo com ele: sinto também que é muito difícil dar nomes de pessoas a pessoas nos meus textos. A minha poesia resiste a isso. Resiste ao romance. As pessoas até aparecem, mas pouco, prefiro inumanos (água, inseto, árvores, por exemplo). Meu último livro publicado, Figurantes (2011), é um longo desfile de “invasores” sem nome. Não são protagonistas, são figurantes, talvez bichos, insetos. Quando num livro só se veem figurantes, é poesia; quando aparecem protagonistas, herói e heroína, é romance. Batizar um figurante é a pior coisa que um poeta poderia fazer.
Não sei de onde os romancistas tiram tantos nomes e sobrenomes. Eu me sentiria ridículo se tivesse de ficar nomeando todo mundo, como eles fazem. Então a poesia me liberou disso.
Curiosamente, meus últimos trabalhos são romances. Ou melhor, “romances”. Em 2012, a Iluminuras, a editora que publica meus livros, vai lançar Enrique Flor. Eu sempre julguei impossível dar nome de personagem a um livro meu. Mas aconteceu. Só que esse nome, Enrique Flor, não é criação minha. Está no Ulysses, de James Joyce, o melhor romance de todos os tempos. Eu nunca li um romance melhor do que esse. E nele tem um personagem que me marcou muito: justamente o senhor Enrique Flor, um músico português que vai a Dublin. Portugal e Irlanda eram países completamente desmatados no início do século XX. O prodigioso senhor Enrique Flor, cada vez que tocava seu órgão, reflorestava o ambiente, as pessoas viravam folhas, troncos, árvores completas, flores. Eu decidi contar (imaginar) o final da vida de Enrique Flor, e então eu o trouxe ao Brasil, onde ele se depara com a selva. Isso vai mudar para sempre a música dele. Ele irá conceber de outra maneira o “sex appeal” vegetal.
Então, para concluir, escrevi um tipo de romance, um poema-romance. Mas os personagens vieram do romance de Joyce. Não precisei imaginar nomes e sobrenomes. Isso eu não gosto de fazer, não tenho paciência para isso. Só fui seguindo Joyce, citando e traduzindo os nomes e os sobrenomes que eu encontrava no Ulysses, sobretudo os sobrenomes, que são muito sonoros, sugestivos. Um poeta pode imitar um romancista, mas não ser um romancista puro, um romancista convicto. O romance sem convicção é o romance do poeta.
Seguindo o método de John Cage, que consiste em resumir drasticamente um grande livro (em todos os sentidos), para poder lê-lo com mais comodidade em voz alta e em público, decidi resumir Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: “Writing for the second time through Memórias Póstumas de Brás Cubas“. Evitei os nomes, pois me pareceram sem importância nesse resumo. Citei algumas situações-chave e as comentei, dando a elas uma “imagem”, uma “cena” nova, criada por mim. (Aproveitei ao máximo a noção de texto póstumo.) Esse “romance” foi incluído recentemente numa revista do Rio de Janeiro, Lado 7, da editora 7 Letras.
Esses dois trabalhos recentes que mencionei são a prova de que a poesia resiste ao romance e escreve contra ele, mas, ao mesmo tempo, graças a isso, é capaz de modificá-lo, de limpá-lo e expandi-lo de outro modo, ou seja, poeticamente, à falta de palavra melhor. Obviamente, estou falando do meu caso pessoal. Depois de Ulysses, o romance que considero mais importante é Memórias Póstumas de Brás Cubas. No capítulo 13 encontrei este nome, que considero incrível: Ludgero Barata. Eis aí o nome e o sobrenome de um pobre professor. Eu estou pensando em escrever o “poema” (a história) do professor Barata: um apócrifo fragmento póstumo do escritor brasileiro que mais admiro. Eu não poderia ter criado eu mesmo esse sobrenome, mas me sinto muito feliz de poder agora “roubá-lo” de Machado de Assis. Pois me convenço cada vez mais que nunca precisarei inventar nomes e sobrenomes. Não sou romancista, ainda bem!
O poeta sente essa felicidade — a de poder pegar nos romances já escritos os nomes que ele não pôde inventar, porque sabia, e sempre saberá, que dar nomes e sobrenomes a personagens é ridículo demais. Isso é tarefa do romancista. (Para o romancista não deve ser ridículo escrever sobrenomes, deve ser natural.) Então o poeta resiste todo o tempo a agir como o romancista, mas sem deixar de “observar” o romance…
Uso de propósito a palavra “observar”. Sempre defini a poesia como um posto de observação. É que aprecio a descrição, a imagem e a comparação. Então observo. Observo e descrevo, entre outras coisas, os romances. Para não fazer igual. Enquanto a poesia resistir ao romance, ela terá algo de seu, algo de muito específico para oferecer ao leitor.
Tarso de Melo (SP-Brasil, 1976)
Creio que a poesia é uma forma de resistência, mas é preciso definir bem que sentido damos às palavras “poesia” e “resistência” nesta afirmação. Parto de uma concepção
bem ampla de poesia, do que é a arte poética em nossa época: poesia, como arte da palavra e mesmo para além da palavra, abrange para mim, neste momento, muitas formas de expressão que alguns ainda insistem em separar e, pior, hierarquizar. Quero dizer: quando falo em poesia, penso no uso da palavra – e nos tensionamentos entre palavra e silêncio – pelos poetas dos livros (o que inclui muito do que chamamos de “prosa” e de “pensamento”), mas também nas práticas de poetas que passam longe dos livros e das revistas literárias: a canção (em todas as suas possibilidade), o rap, o slam, o sarau, o repente, a rinha, ou seja, tudo que cabe sob o guarda-chuva da “poesia oral”.

Ao olhar/ouvir assim, de modo ampliado, as circulações da poesia (em todas as épocas, mas aqui falo da nossa especificamente), é possível perceber que os poetas são fundamentais para a articulação de um pensamento resistente contra as formas autoritárias de vida e as banalizações também violentas da nossa percepção da realidade. A poesia, ao tensionar o uso das palavras, tensiona nossa visão de mundo, tensiona nosso conhecimento da vida e, claro, nosso autoconhecimento. Amplia as condições da nossa sensibilidade e da nossa inteligência diante das pessoas e das coisas.

É um lugar comum que devemos continuar visitando: ao transformar a consciência do leitor/ouvinte – de si, dos outros, da história, do mundo –, a poesia pode transformar o mundo em que aquele leitor/ouvinte age. Pouco, mas pode. Muito, em algumas situações. Podemos ouvir o eco das palavras dos poetas na forma como o pensamento se articula dentro das lutas sociais: “nas palavras de (des)ordem”, nos gritos, nas pichações, nas camisetas, nas hashtags. Nesse sentido, a poesia é um instrumento de resistência importantíssimo, ao organizar as vozes da luta em torno de algumas palavras, dando identidade a quem toma o mesmo partido. E, claro, essa importância não se dá apenas quando os poetas tematizam claramente, de modo contundente, as lutas do seu tempo. Vai bem além disso a forma como a poesia intervém na sensibilidade e na inteligência do seu tempo: ao falar do que não se fala muito, ao falar do que todos estão falando, ao desautomatizar a consciência, ao conscientizar para outras fragilidades, forças e bandeiras, a poesia intervém e, assim, participa da resistência.

Mas é claro: nada disso faz muito sentido sem atentarmos para o que chamamos de resistência e, mais que tudo, sem entender em relação ao que se deve articular essa resistência. A meu ver, resistência é algo que só pode se dar à esquerda do campo político, porque resistir é a tarefa histórica dos que não concordam com a opressão, a exploração, a desigualdade, a censura, o silenciamento, a segregação, a intolerância, a discriminação e todos essas práticas que definem a sociedade burguesa e, portanto, o posicionamento político – a direita – que interessa àqueles que se beneficiam da configuração burguesa da sociedade. A grande poesia é, a meu ver, de esquerda, porque se identifica, mesmo nas suas formulações mais “intimistas” ou “abstratas”, com uma valorização do humano que, por si só, é uma declaração de resistência às forças econômicas, políticas, sociais e culturais que dominam a sociedade e se dedicam a apagar tudo que as ameace. E a inteligência da poesia, a sensibilidade (social, inclusive) dos poetas, a coragem dos que pensam as melhores palavras para gritar – e gritam – são ameaças à organização mesquinha da sociedade. A poesia é gauche, por natureza. Mesmo quando não quer, é levada a ser do contra, nem que seja por contraste. Mesmo quando não se declara, age à esquerda, ou seja, resiste: sua fragilidade é uma afronta.

Abril 2019